“Uma casa é o que fazemos dela”, já o ouvi dizer uns pares de vezes, embora nas últimas semanas de forma mais sentida, como se me quisesse falar diretamente ao coração, lembrando-o que levamos connosco o mais importante. E é verdade, ele sabe bem o que diz. Mas mesmo depois de despidas, estas paredes ainda guardam uma energia, que, do atrevimento da minha ingenuidade, ouso agora pôr em palavras.
Estou sentada nos últimos degraus da escada, imagino que há uns dez minutos, ao lado de um silêncio tranquilizador. Não queria outra companhia nesta despedida. Ele compreendeu – conhece-me já de uma forma que dispensa mais explicações – e saiu com o Buddha para o passeio do entardecer. Não é, por isso, de estranhar, que o primeiro som que subtilmente espreita pelas frestas deste silêncio soberano seja exatamente o das patas do cão a desfilar pelo chão de madeira onde tantas vezes adormeceu, desde que se conheceram, já lá vão dois anos e uns trocos.
O som vai agora perdendo a força, como se o Buddha se afastasse pouco a pouco. Em seu lugar, mesmo à minha frente, ouço agora o piano a tentar contar uma história que já não é de hoje, tropeçando entre as notas, desajeitado, nos típicos soluços de quem está ainda a aprender.
Um descuido na concentração, o olhar guina para a esquerda, e num ápice embato de frente contra o som das gargalhadas de uma mesa cheia de amigos. São o som da cumplicidade a que os anos vão dando forma, o som da euforia dos reencontros mais ou menos frequentes, onde se acumulam as novidades, os mexericos, os novos planos, as teorias, e as palavras atropelam-se pelas prioridades não definidas, porque parece que esta noite todos têm algo para contar. O jantar vai esfriando, mas ele que se agasalhe, porque aqui todos sabem que não passa de um pretexto para a verdadeira necessidade básica do momento: a partilha mais genuína à mesa da amizade. Demoro-me nesta imagem uns bons minutos. Estou a rever as caras, os brindes, as notícias de fazer cair o queixo, as confissões entre garfadas, as lágrimas e os abraços, as discussões guardadas num jogo de tabuleiro, as despedidas e os encontros; vidas, como dizem eles.
Uma pausa, olhos fechados, e um suspiro tímido enquanto volto para o encosto do silêncio. Vem aí a melhor parte do dia. Agora não há som que me distraia. Agora, há apenas a minha cabeça contra o peito dele, dois corpos entregues ao colo de um sofá que perdura contrariando todas as previsões, ao epílogo de mais um dia, ao amor que – como almofada – está lá sempre, à nossa espera, quando, cansados, nos damos finalmente por vencidos.
A casa está vazia, mas na minha cabeça as memórias acotovelam-se para se fazer recordar. Foi a primeira, e esse título já ninguém lhe tira, por mais despida que se venha a encontrar. E desengane-se quem julga que ela perdeu o charme, porque estas paredes de pedra não deixam esquecer por um segundo a personalidade vincada com que me apanhou, desprevenida e comovida, no primeiro instante em que fomos apresentadas. Fica o charme, o silêncio, e um amor escondido nos recantos da memória. Fica uma casa feliz. A tristeza levamos nós, empacotada em caixas de cartão. E fica, à janela, mesmo junto à mesa que ainda há pouco deixei, um convite sincero a todos os que feliz a queiram manter: “anda sentar-te à minha beira”.
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A todos os que por ela passaram, ao meu amor que lhe deu tanto significado, e ao Pedro – super-herói reformado – que aceitou este desafio ingrato de deixar em imagens pedaços do que aqui se viveu, o meu sincero obrigada. Estas palavras lamechas – e as imagens magníficas do Pedro – são para vós. Por hoje, é o que posso dar. Amanhã, talvez se arranje um copo de vinho tinto.