boa noite, margarida

A Margarida gira o dedo e enrola os caracóis.
E por falar neles, como hoje está de chuva, pode ser que se vejam alguns, relembra.

A Margarida tem um baú, e lá dentro tem um tesouro. Abriu o baú para mim, mas esqueceu-se de me mostrar o tesouro.

A Margarida é toda arte. Tem nela a confiança de quem se eleva do sofá e se atira para o tapete. Tem a paciência com que aprende a ser uma árvore de perna e braços no ar, e a resiliência para se manter erguida mesmo com os desequilíbrios da excitação. Tem dentro dela a melodia do amor incondicional, exteriorizada numa canção que acabou de inventar.

As cortinas da Margarida são compridas e tocam no chão, as minhas são triangulares e cabem dentro das janelas. Aprendeu comigo a desenhar andorinhas, eu aprendi com ela a desenhar um menino chamado Afonso.

A Margarida lê o jornal e veste casacos de cabedal.

A Margarida é tão pequenina como os anos que ainda lhe cabem numa só mão, e tão grande como o amor com que a mãe e o pai lhe enchem os dias e coração.
Pode ser que ela ainda não saiba, mas eles são o seu grande tesouro. E, bem apertadinhos, talvez caibam dentro do baú.

Conheci a Margarida hoje, mas sei que vamos ser grandes amigas. É o tipo de coisa que se sabe quando jogas o jogo do Ruca e nos sai o mesmo número no dado. Três vezes seguidas.

A Margarida deu-me tanto hoje.
Eu dei-lhe o meu tempo e uma canção de embalar que acabei de inventar.
E eu sinto: a canção pode até perder-se no tempo, mas o tempo que lhe dei nunca será um tempo perdido.

Boa noite, Margarida.

prepara a arca, noé

Prepara a arca, Noé
que alguém tramou o céu.
E pela força das pingas,
já comentam as más línguas
que é matéria para croché.

Eu cá tenho o meu palpite
para tamanho dilúvio.
Tão repentino e com tal vigor,
só pode ser desgosto de amor.
Isso ou apendicite.

Seja o que seja, reconsiderem
pelas almas do rés-do-chão.
Que isto da chuva maça
e a virar moda é desgraça
que o meu carro não tem leme à mão.

recomeça, já dizia o miguel

“Recomeça…. se puderes, sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade
Enquanto não alcances, não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.”

Conheci o Miguel há uns anos. No auge das angústias e da pressa de viver, a que também chamam adolescência. Não recordo os detalhes do encontro, mas era capaz de apostar o outro olho do Camões em como foi numa das aulas de Português – Será que apostar o outro olho do Camões dá direito a prisão em terras lusas? Valha-me Santa Imprudência. – O Miguel não me deixou muitas lembranças desse primeiro encontro. Mas deixou-me estas palavras, que num intervalo aproximado de anos bissextos se fazem içar pelas cordas da minha memória. Hoje, recordei-as ao som de outro Miguel, de outro poeta.

O Miguel da Recantiga
“E era as folhas espalhadas, muito recalcadas no correr do ano,
A recolherem uma a uma por entre a caruma de volta ao ramo.
E era à noite a trovoada que encheu na enxurrada aquela poça morta,
De repente, em ricochete, a refazer-se em sete nuvens gota a gota.
E, era de repente o rio, num só rodopio a subir o monte,
E a correr contra a corrente assim de trás para a frente a voltar à fonte.
Um monte de cartas espalhadas des-desmoronando-se todo em castelo,
E era linha duma vida sendo recolhida de volta ao novelo.
E era aquelas coisas tontas, as afrontas que eu digo e que me arrependo,
A voltarem para mim, como se assim tivessem remendo.”

Este é um meus poemas mais-que-tudo da música portuguesa. Não será de estranhar, vindo de um dos meus artistas mais-que-tudo da música portuguesa. Já lá vão os dias em que a rádio se alimentava destas palavras. Era a todas as refeições. E eu temia por elas. Imaginem a angústia – outra vez a angústia – de ver o vosso lápis preferido a ser constantemente afiado. Mas – suspiremos – esses já não são os nossos dias. Quando este poema tocava na minha cabeça, eu dividia-me: dois quartos de contemplação pelo encaixe perfeito do jogo de palavras, três sextos de ambivalência porque essas mesmas palavras falavam de dias que já não voltam. Em suma, sentia este poema como uma proto-tentativa (de tão pouco determinada que soava) de refazer os dias já passados. E esta sensação combinava muito pouco com a minha forma de cumprimentar a vida. Estivesse eu na adolescência e seria motivo para mais uma angústia.

Talvez por ter nascido em Janeiro, com um ano inteiro pela frente, não tenha este hábito de consultar frequentemente o passado. Digamos que faço as minhas consultas de rotina. E quando algo dá para o torto, sou capaz de acampar no consultório até conseguir dar um jeito de endireitar o presente. Mas, de uma forma ou de outra, a consulta corre sempre bem, porque eu nunca vou com ambições de mudança. Vou para ouvir e aprender. O que está feito está feito, o que está dito está dito. E, se for tempo de mudanças, então agendo-as para o presente, ou quanto muito para os dias futuros, se houver ainda necessidade de encaixotar ou desencaixotar emoções.

Hoje, deu-me aquela vontade súbita de usar o lápis preferido. Ouvi a Recantiga três vezes seguidas, porque isto de matar saudades requer abraços demorados. E eis que quando os três sextos ambivalentes se preparavam para picar o ponto, o outro Miguel entra na sala. Talvez eles tenham feito um pacto secreto pelo nome que os une. Mas se não era o Torga a trazer-me as primeiras notas do “Recomeça”, eu não creio que algum dia fosse capaz de olhar para a “Recantiga” do Araújo como uma sequência de possíveis recomeços. Como se pudéssemos organizar o passado às fatias, e com cada uma delas criar a oportunidade de fazer um bolo melhor. Reformular os ingredientes. Afinar quantidades. Relançarmo-nos no jogo, como se a vida permitisse que, de quando a quando, os dados mostrassem o mesmo número de pintas.

Agora – obrigada Miguel! – já só um terço de mim se sente ambivalente a ouvir a Recantiga. E eu digo-vos qual é: é o terço teimoso. Mas, a julgar pela fatia de hoje, mais uma boa dose de uma boa poesia e, quem sabe, recupero a minha unidade e faço as pazes com a cantiga.

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Não há dois Miguéis sem três, por isso obrigada Miguel pela tua amizade desde aquele tempo das angústias. Este texto é para ti, embora os dois saibamos que a minha real arte será sempre a banda desenhada.

tempo e amor. e rebuçados.

Genuínas. Simples. Com o coração nas mãos: arriscam, caem, levantam-se. Às vezes choram, nada que um abraço não resolva. Riem muito. Fazem(-me) rir tanto mais. Espontâneas. Cheias de sonhos e de possibilidades. Só “pedem” duas coisas: tempo e amor. E rebuçados, às vezes também pedem rebuçados.

Hoje o meu coração dividiu-se. Uma parte é gratidão, pela criança que fui, pela criança que ainda sou, e pelas crianças de 7 meses ou 70 anos que me rodeiam e me fazem tão feliz. A outra parte, eu nem sei descrever. Acho que ainda estou zangada com o mundo. Há poucos dias, vi uma mãe chorar a morte de um filho com semanas de vida. Abracei-a com a força de uma amizade sentida. Demorei-me. Podia ter ficado ali para sempre, naquele abraço tão apertado que a dor não ia ousar construir casa entre nós.

Quantas mães, quantas crianças mais.

Tempo e Amor. Abraços.
Que façam os nossos dias enquanto os dias forem nossos.

ervilha

“É preciso uma aldeia inteira para fazer crescer uma Ervilha”

Ontem à tarde chegou à aula de Pilates e disse-me que se sentia diferente. Que estava para breve. E eu acreditei. Dei-lhe um abraço apertado no final da aula – “o abraço das 38 em diante”, como lhe chamo. Estava para breve.

Acompanhei o crescimento desta pequena Ervilha meses a fio. Vi a barriga da Mãe a crescer, a tranquilidade e a consciência de si mesma e do seu corpo a tomar o lugar das angústias, das incertezas. É das metamorfoses mais bonitas a que tenho o privilégio de assistir, no meu dia-a-dia.

“A caminhada está feita. Agora, é só deixares-te levar” – disse-lhe logo depois do abraço. E a porta fechou-se e comigo ficou a promessa que voltariam para nos ver, os três.

Hoje de manhã, o telefone toca. “Nasceu, nasceu esta madrugada”, diz-me a Isabel, com a alegria de Parteira na voz. E que nascimento! Nunca nos havemos de esquecer deste, isso é certo. Esta pequena Ervilha apanhou-nos a todos de surpresa. Escolheu o dia e a hora a que ia nascer. E, atrevo-me a dizer, escolheu o local também. Está visto que vai ter uma determinação daquelas que mudam o mundo.

“É preciso uma aldeia inteira para fazer crescer uma Ervilha”. Obrigada Mamã. Obrigada Papá. Obrigada por este miminho. Obrigada por terem confiado em nós para pertencer a essa vossa aldeia. Foi uma caminhada bonita até então. Mas a melhor, a melhor é a que está à nossa frente. A Gimnográvida será sempre a vossa casa, nós seremos sempre a vossa aldeia. Estão no nosso coração.

maria rita

Fico rendida quando vejo pessoas apaixonadas: por alguém, por uma causa, por uma profissão. São 22h e sentamo-nos à mesa para jantar. Somos recebidos com a mesma simpatia e carinho com que se levantaram de manhã. O brilho no olhar já não brilha tanto – são 22h afinal de contas! – mas só porque o cansaço que toma conta dos olhos não deixa espaço para grandes partilhas. A dedicação, essa, continua lá. Não há cansaço que vença uma paixão.

Serpenteiam-se por entre o desejo de um freguês e a ânsia do outro. Podem esquecer-se de trazer a lista, mas nunca do sorriso. Não fosse o nosso cansaço também, e quase que esquecíamos que já eram 22h. Ou melhor, meia noite. Quase meia noite e ainda há lugar na mesa para aquele mimo especial. Ainda há espaço para falar do verão, da disposição das mesas quando a casa enche, da medicação que não deixa brindar connosco.

Falam com o coração. Fazem-me sentir em casa, esteja o restaurante vazio (coisa rara) ou com dez pessoas à porta, a abrigarem-se da chuva com a certeza que a espera compensa. No meio de umas garfadas e um gole de vinho, ainda lhes sacamos um sorriso rasgado. Gargalhadas a esta hora é só para os mais talentosos – e nosso o talento também tem sono. Estamos todos cansados, estamos todos felizes. Tivemos a sorte de nascer bem dispostos (aposto que estava sol nesse dia).

Tenho orgulho destas pessoas. Genuínas como a cidade que escolhi para viver. Acolhedoras como só os portugueses sabem ser. Generosas. Trabalhadoras. E, voltando aos aperitivos: apaixonadas.

São as pequenas grandes coisas.
Maria Rita, Porto

antes dos trinta

10 coisas a fazer antes dos 30
(ou daqui a 3 anos para os velhotes do grupo)

Ainda há pouco era de manhã, e agora já vai ser de manhã outra vez. Ainda há pouco era verão, ainda há pouco eu escrevia 2015 na data e não tinha que rabiscar um 6 por cima do cinco.

A vida corre. Como se tivesse pressa se chegar a algum lugar. Como se tivesse hora marcada, mesa reservada. E nós, muitas vezes sem notar, ainda corremos mais do que ela. Como se amanhã fosse o dia certo para tudo o que não fizemos hoje. Como se aquela porta, onde hoje não entrámos, pudesse ser sempre aberta. Como se..

Escrever resoluções, para o próximo ano, para os próximos três, para os próximos dez, faz-me sentir que, por momentos, abrando a vida. Obrigo-a a parar, beber um gole de vinho, sentar-se um pouco a conversar. Traz à mesa as prioridades, que vivem lá, penduradas nos cabides (ou nas cruzetas) do inconsciente, à espera que seja hoje o dia em que escolhemos vesti-las. Escrever, faz-me parar. Faz com que o que é essencial se ouça mais alto do que a voz daquele rapaz que todos os domingos ali se senta para cantar. Quem sabe se os domingos não são para ele o dia em que escolheu os cabides certos. Mesmo quando aquela camisa de verão não combina nada com o frio que se sente nestes dias, e que se vem sentar connosco à mesa vencendo a parede mal isolada.

Não é preciso muito. Um guardanapo de papel, uma caneta que há sempre alguém que sabe de alguém que tem. E alguma disciplina, para que o pensamento não fuja de nós a ver se ganha a corrida à vida.

bom dia porto covo

11990477_928345720556770_8731302044409128929_nBom dia a quem bateu com a cabeça na “parede” do carro todos os dias, sem excepção, e todas as vezes se riu e pensou “foi a última”

Bom dia a quem anda com a cabeça na lua e não se importava nada de ficar por lá mais uns dias, na doce caminhada da despreocupação

Bom dia à saudade, à lembrança do conforto do que nos habituámos a chamar de casa, aos amigos e família com quem partilhamos os momentos (mais ou menos) felizes, ao trabalho que fazemos com paixão apesar de todas as adversidades (leia-se impostos e coisas que tais).

Cheira a mar, a café, a livros folheados
Cheira a abraços de reencontro e à melancolia antecipada de umas férias de sonho.

o egoísmo da felicidade de quem fica

Há pouco mais de uma semana, lia, nas palavras de alguém que decidiu mudar de país por opção (não por falta de opções), algo sobre a dose de egoísmo que está presente na felicidade de quem decide ir (ponto n1 deste texto).
Hoje, dou por mim num já lugar comum, o do egoísmo presente na felicidade de quem fica. É um autêntico baloiço de emoções. Este orgulho por ver aqueles de quem gostamos ter a coragem de ir e lutar por aquilo que acreditam, por um futuro escrito pelas próprias palavras e não apenas pelas que vagueiam no país onde nasceram, ou simplesmente pelo espírito aventureiro, livre, desprendido, de ir em busca do que de bom e desafiante pode haver na surpresa do desconhecido. E do outro lado – e que outro lado! – esta tristeza que vive na certeza que há um lugar que não volta a ser preenchido, um vazio que ninguém substitui porque pertence apenas a essa pessoa, ao seu sorriso ou má disposição, às suas gargalhadas e amuos, à forma tão particular como ele ou ela nos faz sentir.
 
Partem uns e dão espaço para que outros cheguem, é certo, mas também esses criam um lugar tão especial. Um lugar só deles, que não substituiu ou compensa qualquer outro. Não há lugar para compensações na amizade. Há sim saudade, muita e sincera saudade.
 
Uma palavra de gratidão aos amigos que como eu vão ficando e me seguram neste baloiço, uma palavra de força aos amigos que vão para que se mantenham firmes na busca dos seus sonhos e objetivos, um abraço de boas vindas aos amigos que vêm por bem criar um novo lugar para si.
 
E no meio deste turbilhão de emoções, uma letra que delas fala tão bem.

aqui nasceu o jazz

Aquele momento em que vais uma instituição para vender um serviço, és recebida pelo dono de 85 anos que te conta todo o seu percurso de vida com mais detalhes do que os minutos que tens para o ouvir, mas mesmo assim não te consegues levantar, ou apressá-lo, sentes que ele precisa daquele tempo, daquele respeito, de contar aquela história provavelmente pela milésima vez – ajudas, quanto muito, a encontrar as palavras que a memória dele já não disponibiliza com a velocidade que o discurso impõe – e sais de lá, 40 minutos depois, sem vender o serviço porque não se ajusta ao que esperavas encontrar, mas com a nítida sensação que ganhaste o dia e mais uma mão cheia de lições de vida.

As surpresas que escondem as portas do Porto.