No comboio, à janela
correm flores e campos verdes
correm nuvens, e corre a vida
como se alguém corresse atrás dela.
No comboio, à janela
tudo é breve, uma miragem.
E correm pés de gente grande
em busca da próxima paragem.
No comboio de quem vai dentro
tudo é vagar, ganha-se ao tempo.
E nesta pausa, neste intervalo
o corpo cobra a sua vontade
o capricho, a necessidade.
No comboio de quem vai dentro
há de tudo como na feira:
uns contam a história do vigário
outros libertam-se em confessionário
com um qualquer desconhecido
que por jeito é ateu.
E há os que se vingam nos livros,
os que são música nos ouvidos.
Os que são desejo, e os que são temor
que outros se sentem à sua beira
e se desdobrem em conversas
sobre política ou amor.
E há ainda os que gritam porque todo o dia é festa.
E os que se rendem, embalados,
ao doce pecado da sesta.
E há ainda aqueles, os estranhos,
que só estão. Qual sentinela,
num silêncio que é só deles
absorvidos, hipnotizados,
por aquela vida que corre
no comboio, à janela.
No comboio, quem diria
vai a paz e vai a guerra.
Vai o tempo, vai-se o tempo
na sua pressa,
no seu vagar,
pouca terra, pouca terra.
Quando me permito parar, quando me permito olhar com a atenção e o detalhe tantas vezes adormecidos pela azáfama dos muitos dias, o mundo revela-se diante de mim nas suas formas mais bonitas. A mais interessante das muitas é, para mim, o ser humano. Quando me deixo de corridas contra o tempo, dou por mim a olhar para as pessoas com os olhos de quem vê pela primeira vez. Com a curiosidade de uma criança. E são muitas as vezes me encontro com esta reflexão: o quão pouco sabemos uns dos outros. Quão pouco sabemos de nós.
Só eu, conto pelo menos três histórias diferentes em cada pessoa em que me demoro.
A história que, sem querer, imagino, enquanto olho para ela. A história que se constrói na limitação das minhas crenças e preconceitos, aprisionada pelas amarras da minha própria criatividade.
Um pouco mais aproximada da verdade, há depois a história que cada um conta sobre si mesmo, todos os dias. Ao falar de si, daquilo que pensa ou acredita, das suas memórias, dos seus planos de futuro.
Mas a história que mais me intriga, a história que mais me apaixona, é esta nossa história que só a nós contamos. Aquela que ainda estamos a descobrir. Aquela crua, sem filtros, sem juízos de valor. Aquela que vive para lá da aceitação do outro e da sociedade em geral. É essa que me faz ficar ali, parada, a observar cada desconhecido com um interesse genuíno, com a doce inquietação de quem começa a ler a primeira página de um livro novo.
É assim que (n)os vejo, como um livro.
Que talvez leve uma vida a ler – e que bonito (?) se assim fosse.
Que talvez nunca ninguém leia de verdade – e que triste (?), se assim o é.
Esse sim, seria um livro e tanto. O livro das três (mil) histórias que somos, cada um de nós, humanos.
Quais são exatamente os requisitos para considerares alguém uma “pessoa estranha”? A forma como se veste? As escolhas que faz? A forma como se comporta? As pessoas com quem (não) se dá?
Normal. Que palavra tão espaçosa esta. Quantas ideias, pressupostos e utopias cabem num único adjetivo. Chega a ser irónico que uma palavra tão espaçosa seja na verdade tão vazia. Vazia, despersonalizada, descaracterizada, volátil, altamente dependente. “Normalidade é um estado padrão, normal, que é considerado correto, sob algum ponto-de-vista. É o oposto da anormalidade. A normalidade muitas vezes se dá por conta de uma maioria em comum, sendo anormal aquele que contraria esta maioria.”
Normal. O selo de garantia que te assegura que te “encaixas” na sociedade. Que tu és quem está bem, e os outros, esses seres raros e diferentes que resistem à curva da normalidade é quem se deve preocupar. Em ser diferente, pensar diferente, escolher diferente. Verdade, é que este não é apenas um “selo” que exibimos com orgulho, é um “selo” que, do conforto de quem o possui, queremos estampar a todo o custo em quem não ambiciona sequer ser “selado”.
Normal. É assim que me sinto em alguns momentos. Momentos suficientes, creio eu, para sentir que me enquadro, que me encaixo, que me permito viver nos sucessivos “normais” que em três décadas já conheci, todos eles gritantemente diferentes, todos eles invariavelmente normais. O normal muda, e as pessoas normais mudam com ele. Agradeço por isso. Não consigo imaginar o que sentirá alguém a quem a camisola do normal nunca serviu. Frustração? Solidão? Paz? Alegria?
Estranha. Diferente. Não normal. É assim que me sinto em alguns momentos. O resultado? Orgulho, gratidão. Por me ter permitido sê-lo, senti-lo. E depois há dias em que tento “normalizar” os que me rodeiam para a necessidade da diferença. Há dias em que não tenho energia e simplesmente não quero saber. Há dias em que me sinto sozinha. Há dias em que quase dá para chorar. Há dias em que dá para rir, fazer humor, ironizar, praticar o sarcasmo.
Normal. Quantos de nós “carregamos” esta necessidade quase inconsciente, de nos identificarmos, de pertencermos? Quanto é que isso faz de nós melhores pessoas? Nada, na minha humilde opinião. Mais adaptadas, sem dúvida. Mais acompanhadas, quem sabe. Mas quão mais perto de nós? Quantas “camadas” conscientes ou inconscientes nos permitimos ainda em prol do conceito de normalidade do momento, da vontade ou necessidade de sermos aceites, ou como “um meio” para um bem maior? Quão perto estamos do que realmente somos ou do que alguém espera que sejamos? Do que nós próprios esperamos ser?
Normal. Hoje dei por mim a pensar: para que serve realmente esta palavra? Seria o mundo um lugar mais fácil e mais bonito de viver se a deixássemos entregue ao seu próprio vazio e abraçássemos verdadeiramente a nossa individualidade, a nossa diferença, e as diferenças dos demais?
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Normal People (2020) é uma série diferente, sobre pessoas (não) normais, com interpretações excecionais dos protagonistas, que me deixou com vontade de ler o livro que lhe serviu de base e ouvir a banda sonora com toda a atenção que merece.
Podem mudar os hábitos,
podem mudar os dias.
Podem até mudar mentalidades,
as manhas e as manias.
Nós aguentamos.
Mas há uma condição:
Fica o mar e o cheiro da maresia.
Fica o sol enquanto dura o dia.
Fica a arte e a melodia.
E fica o amor.
E onde ele estiver haverá abraços,
haverá afetos.
Haverá família, e avós, e netos.
Haverá calor.
Não é rebeldia, senhor.
E tão pouco desconsideração.
É apenas a simples constatação
que não há forma alguma,
nem tão pouco tamanho talento,
que faça rimar o amor
com esse polissílabo,
essa palavra fria,
essa palavra vazia:
distanciamento.
As últimas semanas têm sido intensas.
Ironicamente, o tempo por aqui parece fugir como se tudo estivesse igual – é que, antes de tudo o mais, é preciso voltar a juntar as peças que foram quebradas com a pandemia, e é preciso inventar novos puzzles para sobreviver a ela.
Mas a verdade é só uma: não está tudo igual. E não vai ficar tão depressa. E é preciso dar-nos um tempo para o sentirmos de todas as formas que nos cheguem, com tristeza ou alegria, com revolta ou com esperança, com medo ou com resiliência.
Este vídeo deu-me uns minutos de pausa para me permitir parar, sentir, chorar as emoções. E sorrir. A arte tem este poder maravilhoso sobre nós.
Tenho pensado neles – artistas – e em todas as pessoas/trabalhadores para quem a versão digital não tem como ser uma opção – e que estão, assim, com a vida em suspenso e, imagino, aterrorizados com o futuro tanto ou mais do que com o presente.
Tenho pensado nos empresários a quem o sono se foi, porque tudo o que pensam, dia ou noite, é se vão conseguir pagar as contas no final do mês, dos meses, e nos trabalhadores que estão consigo neste barco que não sabem ainda se chegará a bom porto, temendo que se afunde junto com os sonhos e o suor de uma vida.
Tenho pensado nos pais que, por esta altura, devem já estar exaustos, a trepar paredes, enquanto se dividem entre o teletrabalho e o cuidado aos filhos que estão por casa, e se questionam quanto tempo mais poderão aguentar assim.
Tendo pensado nas crianças a quem a escola digital não chega, nos idosos isolados nas suas casas, nas grávidas que já devem ter questionado a sua má sorte para trazer o seu bebé ao mundo em tempos tão incertos, nos recém-nascidos que não vão ser abraços ao nascer.
Tenho pensado nas famílias que choram a morte dos seus, e nas que respiram de alívio pelos números da TV não representarem ainda caras conhecidas. Tenho pensado em Itália, em Espanha, e em como estes nomes agora parecem apenas nomes, num mundo que afinal é um só.
Tenho pensado nos guerreiros que todos os dias se apresentam na linha da frente, divididos pela missão e pelo medo de, ao salvar os outros, não se salvarem a si ou aos seus.
Tenho pensado tanto, e ao mesmo tempo tão pouco. Sentido tanto, mas, ao mesmo tempo, tão pouco.
Sei que me sinto agradecida por saber que ainda me falha o tempo: é sinal que a vida, de uma forma ou de outra, ainda continua por aqui. Sinto-me agradecida por não ter que estar na linha da frente – eu, ou qualquer um dos meus – com todos os riscos que isso acarreta. Sinto-me agradecida por ter esta força, esta esperança, este optimismo que sempre viveram em mim, e que me dão a tranquilidade para viver um dia de cada vez com a certeza que “vai ficar tudo bem”.
Quando foi a última vez que levaste um soco no estômago? Eu lembro-me bem. Foi um soco que durou as últimas duras horas. Um soco chamado Joker.
É assim que reconheces um bom filme: quando ele te atinge nas entranhas e não te deixa dormir até que a dor alivie um pouco.
Joker mostra-nos a forma como falhamos às pessoas. Como falhamos como pessoas. Inconscientemente, ou com plena intenção. Joker mostra-nos como falhamos às pessoas/como pessoas cada vez que escolhemos olhar para o lado, criticar antes de tentar compreender, julgar antes de conhecer. Quando ignoramos porque não é connosco, quando não são os nossos problemas, quando não está no nosso metro quadrado de chão.
Joker mostra-nos como falhamos às pessoas/como pessoas quando escolhemos a indiferença, quando decidimos que não passa por nós olhar pelo outro, olhar para o outro, olhar para nós no lugar do outro. Quando, às vezes, estamos tão cegos de nós que não conseguimos sequer ver que há um outro.
Esta noite levei um soco, e espero não me esquecer dele tão depressa. Que me acompanhe e me torne mais humilde, mais generosa, mais humana. Que me faça falhar menos, às pessoas, como pessoa. Esta noite levei um soco no estômago. E não podia ir dormir mais agradecida por ele.
Em dias como os que vivemos hoje, dou por mim a desejar que muitos de nós, por esse mundo fora, pudessem levar um soco assim também.
Esta é a minha foto preferida de um fim de semana próximo, estava fevereiro a despedir-se e março a entrar em cena. Um fim-de-semana de passeio, de mãos dadas e abraços sem medo, em que a única preocupação era encontrar as amendoeiras que ainda – ou já – estariam em flor. É que, segundos os locais, fomos “demasiado cedo”, ou já fomos “demasiado tarde”, para as ver assim, com a sua roupa de gala.
Olhar para esta fotografia agora é, para mim, ouvir uma melodia de emoções.
É serenidade e beleza, é esperança por saber que as flores vão voltar no ano que vem. Que no meio da imprevisibilidade do momento que vivemos, o mundo vai encontrar o seu equilíbrio e seguir em frente. Como sempre faz, como sempre fez.
É tristeza e melancolia, por tudo o que, naqueles dois dias de passeio, dei por garantido. É humildade e reconhecimento perante um universo maior e mais poderoso. Perante ele, nós, humanos, somos afinal tão frágeis como as flores das amendoeiras lá do alto, que voam montanha abaixo à primeira rajada de um vento mais forte.
É a certeza que podemos estar sozinhos e continuar erguidos, porque as nossas raízes são profundas, e não nos falta o alimento para o corpo. É a inspiração para trazer alguma da nossa cor a estes dias cinzentos, de levar um pouco dessa cor, dessa luz, aos nossos que estão por perto e aos que, mesmo longe, podem estar tão mais perto do que algum dia foi possível. Não deixem de vestir a vossa melhor cor, não deixem esmorecer essa vossa luz, não deixem de escolher amor e bondade para com o outro, e agora mais do que nunca, para com a sociedade.
E não deixem de repetir, agora ou sempre que precisarem de o ouvir: dure o que durar, só há um caminho possível: (vamos todos) voltar a florir.
Ela nasceu.
E já vem com a história meia contada.
Vai ser bonita e educada
E usar saia rodada.
E vai fazer-se merecedora de um homem,
forte, que a proteja
dos seus sonhos e ambições:
esses tão temidos ladrões.
Vai ser, assim, a mulher de alguém,
e um dia dará uma boa mãe.
E daí pouco mais fica por dizer,
daí, pouco mais fica por viver,
cumpridas estão as obrigações
de quem assim nasceu,
mulher.
Ela nasceu.
Mas não lhe serve essa história
que tantos lhe tentam narrar.
Guarda, por isso, as expectativas,
as ideias preestabelecidas,
as fronteiras, as tradições.
Nela, vive a força do mar revolto
vive o grito de gerações,
vive a história por contar.
Ela nasceu.
Independente, irreverente.
Há quem lhe chame diferente.
Não a temas, ela não quer o teu lugar.
Ela quer ser livre para pensar.
Para falar.
Para se responsabilizar.
Ela quer ser ouvida, quer ter uma palavra a dizer.
Ser dona de si e do seu corpo.
Ser livre para escolher.
Está tudo bem, não precisas de a proteger.
Ela não espera, tão pouco, que consigas compreender.
De ti ela espera respeito.
E que também tu, ao teu jeito,
possas viver em liberdade.
Por aqui por favor. Isto é um assalto.
Pede-se silêncio total, vai falar quem sabe. Ouvir-se-ão risos e lágrimas, e paz e ameaças. Ouvir-se-á ousadia e pureza. Em todo ou qualquer caso, a genialidade será gritante. Paralisante. Constante. Lutar é infrutífero. Ceder é o mais inteligente. Deixar-se levar, na orgia dos sentidos. O corpo fica, a alma dança. O talento é a arma mais forte. A música é o maior vilão. Eu bem queria prendê-la, segurá-la dentro de mim. Mas ela é o meu corpo, e o meu corpo é dela. E eu sou tudo, e feliz, enquanto ela me escolher como refém.
Por aqui por favor, isto é um assalto.
Ao passar à porta do quarto dele
o seu corpo ainda estremece.
E aquele sufoco no peito,
será que nunca desaparece?
Espreita o berço, imaculado
que só chegou a ser usado
nos ses da imaginação.
Quis o destino ou a má sorte
que ela digerisse a morte
na sua mais amarga versão.
Todos os dias, ao acordar,
sempre o mesmo ritual:
aqueles minutos de pausa, para acreditar que é mesmo real.
Ele não vai voltar.
E a ela faltam-lhe as forças, até mesmo para chorar.
Ele partiu, e deixou as memórias
de 9 meses de histórias
que ela construiu em segredo,
porque na imaginação não há medo:
os primeiros passos, os abraços da irmã,
a primeira vez que ele diria “mamã”.
O primeiro dia de escola.
O primeiro pontapé na bola.
___
“É a menina dos olhos da mãe”
diziam eles sem hesitar.
E ela sorria e consentia,
nem se esforçava em negar.
Era a única, e tão desejada,
que o seu amor não conhecia outra morada,
que não a da filha, Maria Belém.
Faz amanhã um ano, que a mãe viu Maria partir.
Aquela doença cruel, que nem deu tempo para se despedir.
Vinte e nove anos de vida, um futuro ainda a florir.
Agora a mãe vive em silêncio, naquela casa vazia.
Não tem fome, não tem sede, não distingue a noite do dia.
Outrora crente, devota,
agora tudo em si é revolta,
e uma dor cravada no peito,
que dorme consigo no leito
e não há quem a leve embora.
Zangada com a vida e com Deus
ainda se pergunta, olhando os céus,
como foi afinal Ele capaz
de, num instante tão fugaz,
roubar a menina da sua mãe,
a menina que lhe queria tão bem,
a sua única Maria,
a sua Maria Belém?
____
Era um dia cinzento de Outubro
e a temida carta chegou.
Ainda a leitura do filho ia a meio
quando o seu coração congelou.
Era a Pátria que por ele chamava
para uma guerra que não tinha fim.
Tudo nela dizia “não”,
mas ao seu menino só servia o “sim”.
Num dia cinzento partiu
com a promessa de num instante voltar.
Deixou a mãe lavada em lágrimas,
e uma data para casar.
Era um dia cinzento de Outubro
quando de novo a porta se abriu:
entrou a Pátria, em homenagem,
elogiando a valentia e a coragem.
O filho, esse, nunca mais o viu.
A guerra segue, sem fim à vista,
mas ela tão pouco quer saber.
Nesta guerra amaldiçoada,
foi ela quem mais perdeu,
é ela quem não tem já nada a perder.
Agora vive amarrada, a dor é a sua prisão.
Passa horas no sofá, o copo de licor da mão.
Ao lado, na mesa de apoio,
pousou um livro que alguém lhe deu.
Na página que deixou escancarada
pode ler-se, às linhas tais:
“nenhuma mãe, devia, jamais
chorar a morte de um filho seu.”