Myanmar surgiu no nosso mapa de forma discreta, longe de se afirmar como uma opção, especialmente para mim, que viajava pela primeira vez rumo ao oriente. Na mala acotovelava-se a roupa para 16 dias, sem sobrar espaço para grandes expectativas. No entanto, levava em mim um desejo profundo de conhecer uma filosofia de vida com a qual nunca tinha tido qualquer contacto prévio: o Budismo. Foi a pensar nisso que a roupa da mala se acomodou para servir de leito a uma “bíblia” sobre o tema, O Livro Tibetano da Vida e da Morte, de Sogyal Rinpoche, uma prenda que alguém gentilmente me ofereceu quando lhe confidenciei os meus planos, porque “Há livros que não podem ser comprados. Devem passar de amigo para amigo.”
YANGOON, UM INÍCIO ABAFADO
Yangoon foi sincero connosco desde o primeiro minuto: um pé fora do aeroporto e, no mesmo instante, todos os sentidos são anestesiados por um calor abafado, um companheiro fiel nos 2 dias de passeio pela cidade. O corpo transpira só por existir, e a sombra pouco mais oferece que um suspiro de alívio que, ainda assim, é digno te toda a tua gratidão.
1h30 de carro separa o aeroporto do centro de Yangoon. Restabelecidos os sentidos com o ar (fresco) condicionado do táxi, as primeiras pinceladas da cidade revelaram-se-nos emolduradas pelas janelas do carro. Homens de saia comprida – a que mais tarde chamaria de longyi, a peça de vestuário mais usada em Myanmar, por locais, e por turistas que depressa se rendem à tradição – passam por nós a pé ou de bicicleta, alguns de cigarro na boca, outros de guarda-chuva/sol na mão. Têm as maçãs do rosto pintadas, com algo que, um dia depois, saberia dar um nome: Thanakha, uma substância típica de uma árvore original da Índia, que em Myanmar ganhou outra dimensão pelo uso constante, especialmente por mulheres e crianças, com o principal objetivo de as proteger do sol e dar um efeito refrescante à pele – o qual eu mesma tive oportunidade de comprovar dias depois. Vendedores de estrada esgueiram-se por entre os carros e tuk-tuks em todas as oportunidades, num trânsito aparentemente caótico, onde a buzina assume um papel de protagonismo constante, substituindo algumas – não todas, felizmente – das normas da condução.
O Inya Lake apareceu alguns quilómetros depois, oferecendo um tom azul-bonito a uma paisagem agitada mas cromaticamente monótona. É com essa imagem que, mesmo com o fervor da curiosidade de principiantes, nos rendemos ao cansaço de uma viagem longa e nos deixamos conduzir, adormecidos, até ao coração de Yangoon.
Sule Pagoda foi a nossa primeira anfitriã aos rituais espirituais dos birmaneses. As padodas são templos semeados por todo o país, verdadeiros casulos de oração, que, no caso de Yangoon e outras cidades de semelhante azáfama, criam um intervalo de paz – e ar fresco – entre os quarteirões de caos que se vive nas ruas. Pés descalços e o corpo coberto são sinais de respeito requeridos a todos os visitantes. Os altares de Buda sucedem-se ao longo da pagoda, e as pessoas chegam através das diferentes entradas para lhe trazer flores ou prestar homenagem. No espaço de oração mesmo em frente aos altares, os visitantes devem estar sentados, mas sem esticar as pernas – é sinal de desrespeito. Pedir silêncio é quase desnecessário, o ambiente e um pouco de sensibilidade falam por si.
Bogyoke Aung San Market é uma referência frequente para viajantes em Yangoon. É um mercado de lojas tradicionais, especialmente atraente para fãs de souvenirs. Mas se o que procuras é um pouco do dia-a-dia de quem vive na cidade, o mercado onde te vais querer perder mora na Rua 25 e alonga-se pelas ruas vizinhas. Theingyi Zay Market é uma experiência de cores, uma verdadeira overdose de cheiros, e uma oportunidade imperiosa para conhecer as entranhas (dos peixes e) da cidade.
A pérola de Yangoon aguardou-nos pacientemente até ao entardecer. A Shwedagon Pagoda (shwe=ouro, dagon=antigo nome de Yangoon) ergue-se, imponente e majestosa, no topo de um monte, qual estrela polar de toda a cidade. É um dos monumentos budistas mais importante do país, e por isso será muito fácil, ao percorrê-la no sentido dos ponteiros do relógio – como conta a tradição – encontrar não apenas turistas, mas muitas famílias, fiéis, monges, que chegam para orar, meditar, prestar homenagem e redimirem-se dos seus pecados em busca de bom karma. A stupa, com 2500 anos estimados, é também um símbolo de resistência, aguentando-se firme mesmo após vários desastres naturais e períodos de ocupação militar. Ao pôr-do-sol, o ouro que a reveste dá-lhe um brilho especial, mas é ao cair da noite, com as centenas de velas em chamas de luz e fé, que o ambiente mágico que a envolve chega a causar arrepios. O som das orações mistura-se com o de milhares de campainhas de ouro e prata que oscilam no topo da coroa. O melhor a fazer, por agora, é mesmo sentar num qualquer canto e deixar-se envolver pela energia e beleza deste momento.
O segundo dia em Yangoon trouxe-nos um encontro fortuito com Htoo-Htoo, um guia local, da nossa idade, que, tal como nós, aguardava o próximo comboio para Danyingon, uma pequena vila onde dá aulas de inglês a crianças e jovens, colocada no mapa por um grande mercado local, uma das nossas motivações para aquela viagem. Na verdade, a expectativa para aquela manhã era fazer toda a linha de comboio de Yangoon – conhecida como “circular train” – um plano de 3h30 sem paragens. Descobrimos mais tarde na estação que a linha estava interrompida na região norte para restauro, mas que ainda seria possível apanhar o comboio durante umas quantas estações até ao mercado onde planeávamos sair.
O comboio é utilizado sobretudo por pessoas locais, e nas carruagens é um entra e sai de vendedores de todo o tipo de alimentos ou invenções chinesas que tentam vingar no país vizinho. Pela janela, sucedem-se os campos cultivados de um país que vive em estreita ligação com o setor primário. As crianças, envergonhadas, desfazem-se em sorrisos mais ou menos tímidos, quando as conseguimos conquistar. Htoo-Htoo – a quem por esta altura já tínhamos apelidado de Talky – deu-nos a conhecer um pouco do país pelos seus olhos, numa conversa tão relaxada que, quando demos por ela, o comboio parava em Danyingon, mas a vontade de ouvir mais queria seguir viagem. Decidimos, por isso, fazer um investimento nos seus serviços como guia para Mandalay, uma cidade de perder de vista, para a qual tínhamos já a ideia prévia de fazer algo do género, dependendo das opções disponíveis. A despedida foi, por isso, em forma de até já, para depressa acabarmos a deambular nos corredores sucessivos do maior mercado dos arredores de Yangoon. Gentes de aldeias vizinhas chegam ao nascer do dia para comprar produtos que revendem mais tarde na sua terra mãe. Uma multidão de comerciantes sobressai nas pilhas de frutas, legumes, peixes fumados… mas a certo ponto somos nós, dos poucos turistas no local, o principal foco de atenção de quem por lá pára. Os sorrisos atropelam-se de forma gentil, sempre acompanhados por um olhar profundamente curioso. Retribuímos a simpatia com “Mingalabar”, um “olá” que lhes nutre mais ainda a expressão de alegria. É com esta imagem preenchida por rostos de felicidade que, ao cair da tarde, deixamos Yangoon, para uma viagem longa, pela noite dentro, rumo a Nyaung Shwe.
INLE LAKE, O SOSSEGO PINTADO DE AZUL
Chega a ser irónico – ou talvez tenha sido só connosco? – que um local que consta na rota de quase todos os turistas que viajam para Myanmar nos tenha oferecido três dias de tanta tranquilidade e bem-estar. A verdade é que, desde o momento em que saímos do autocarro de mochila às costas até à chegada ao hotel, fomos constantemente assediados: “Boat trip?”, “Where are you from? Boat trip?”, “Maybe tomorrow… boat trip?”. Mas tudo isso se dissolveu horas depois, entre os suspiros de quem se prepara para uma sesta numa cama de verdade, e na água da piscina que já não era apenas uma miragem. Horas depois, com a energia restabelecida, fomos, de bicicleta, ao encontro do pôr do sol na Maing Thauk Wooden Bridge, a 12km de Nyaung Shwe, a cidade mais povoada entre as mais de 200 cidades e aldeias que dão forma às margens deste lago de águas doces.
Os principais habitantes destas povoações são apelidados de Intha (filhos do lago) e são donos da mesma humildade e gentileza que encontrámos até então. Os que lidam diretamente com os turistas repetem-se em pedidos de desculpa pelo seu “little english”, ao mesmo tempo que empregam toda a sua boa-vontade em fazer passar a mensagem. Afinal de contas, o turismo é também uma das suas fontes de sustento, que, juntamente com a pesca e o artesanato tradicional, desempenha um papel relevante na economia local.
É esse mesmo artesanato que nos dão a conhecer nas tão aclamadas “boat trips”: autênticos negócios de família, apresentados aos turistas pelos membros mais jovens, que arranham o inglês com um sotaque quase incompreensível, e com a esperança viva que a beleza dos seus produtos preencha os intervalos em que a comunicação falha. Quanto a mim, tive uma conversa interessante com uns brincos de prata com pedras de Jade, e com um candeeiro de pasta de papel, o mesmo material que utilizam para fazer os guarda-chuva/sol coloridos com que se decoram os hotéis, restaurantes, e alguns turistas. O barco fez ainda algumas paragens numa casa de tecelagem de seda, algodão e lótus, e numa oficina onde se fazem os típicos barcos de pesca, que levam apenas uma pessoa (custo aproximado de $800), e de transporte, com capacidade para 5 a 6 pessoas (custo aproximado de $3000). O barco atracou também na “casa de férias” das Long Neck Ladies ou Kayan Women, meninas e senhoras com anéis de ouro colocados no pescoço – uma tradição que, supostamente, já estará extinta, mas que continua a servir de isco para o turismo no Inle Lake, embora a terra de origem destas mulheres esteja, na verdade, bem-distante.
Não obstante, a grande armadilha turística que ainda persiste nestas águas são os pescadores acrobatas com cestos de bambu. Eles não demoram a revelar-se, já que à mínima sensação de turista presente, se aproximam propositadamente e iniciam os seus passos de dança, até que a coreografia culmina num estender da mão na nossa direção à espera de retribuição pelo espetáculo. O nosso “boat man” chama-lhes “fake fishermen” – já lá vão os anos em que a autenticidade foi substituída por técnicas mais modernas de pesca. Ainda assim, há espetáculos que vale apena ver pelo menos uma vez na vida.
Negócios à parte, a beleza de uma viagem de barco no Inle Lake revela-se bem cedinho, antes mesmo do sol nascer. O silêncio é soberano, mas desengane-se quem pensa que às 5h da manhã a cidade ainda dorme: há pequenos focos de luz nas margens do lago, que denunciam os rituais matinais das famílias que por ali fazem vida. Quando os olhos já se habituaram ao escuro, surge a silhueta de uma senhora que lava o seu longo cabelo nas águas quase imóveis. Depressa percebemos que não estamos a sós com o lago: barcos de pescadores sucedem-se, em sentido oposto ao nosso, fazendo-se anunciar com uma pequena luz de presença. Vão, de certo, na direção do mercado de Nyaung Shwe – uma paragem obrigatória para se deixar apaixonar, outra e outra vez, pelo coração deste povo, pelas expressões tão genuínas dos mais pequenos que acompanham os pais, pela mão ou pelo colo, para comprar ou para vender.
Outro barco de pescador passa por nós trazendo-me de volta para o lago. Será que teve sorte? Será que leva o sustento da semana, ou apenas deste dia? Aos poucos, o céu veste-se em tons de rosa, mas a montanha que nos vigia dá ainda uns minutos de privacidade a um sol acabado de acordar. Na margem oposta, os “floating gardens” acolhem-nos com uma tranquilidade coerente com o ritmo a que pulsa o corpo nestes instantes. São, de facto, autênticos jardins flutuantes, com cerca de 1 metro de profundidade e 2 de altura, onde se destacam, com grande vantagem sobre a concorrência, as inúmeras plantações de tomate, que dali conhecerão os mercados de todo o país e até de países vizinhos. Os barcos continuam a passar por nós, em linhas quase paralelas, mais ou menos tangentes. Alguns, com um tripulante só, mas nem por isso com espaço de sobra: vão carregados de sacos carregados de esperança que o dia corra de feição. Diz o nosso “capitão” que aquela era uma vendedora de flores, e a outra, a quem já o olhar perdeu o rasto, vende aquela planta bem verde que muitos mascam, por vício, até “sangrarem da boca”. Não há dentes que sobrevivam naquele campo de batalha, uma imagem que pode impressionar os mais sensíveis.
A jornada segue pelas “estradas” labirínticas da “Floating Village”. Casas de madeira erguem-se por todo o lado, há vida naquela aldeia que mais parece história de livro. Uma escola, também ela de madeira, também ela enraizada no lago, recebe os seus alunos para as aulas da manhã. Camisa branca e longyi verde escuro é o uniforme de quem quer aprender, padrão em todo o país. A escolaridade é agora gratuita até ao ensino secundário, e os alunos são incentivados a fazer um ano de pausa findo este ciclo. Ainda assim, há várias crianças que não vão à escola, ou o fazem apenas um dia por semana, quando folgam dos afazeres da família. A independência chega cedo às crianças e jovens birmaneses que, desde pequenos, pedalam uma bicicleta maior do que eles, de mochila às costas, na direção da escola. Outros, bem abaixo do limite legal, conduzem-se nas suas scooters, com um à vontade de quem aprendeu a guiar antes mesmo de ter aprendido a andar. Alguns deles não levam a escola como destino, mas sim um qualquer outro trabalho, num hotel ou restaurante por exemplo, que será uma ajuda essencial para as contas familiares do mês – é que a terra não produz as suas dádivas equitativamente a cada 30 dias: haverá meses que são de colher, mas quando a época é de semear toda a ajuda é necessária.
A viagem até ao ponto, para nós, mais afastado do lago foi agradavelmente solitária, mas agora que nos aproximamos de Inn Dein há toda uma nova vida e agitação, muito à custa do mercado matinal que já mexe há um par de horas. Perdemo-nos, mais uma vez, entre barracas e pregões, entre sorrisos fáceis ou sugestões de “souvenir”, “good price”, “local price”, “for you a discount”. Há quem não fale e só congele o olhar à nossa passagem. Há quem sorria só depois de levarmos um avanço. Há quem faça pose para a fotografia por nos ver de câmera ao ombro. Mas em todos há uma autenticidade, uma humildade que não se explica. Deixamos o mercado para nos passearmos agora entre uma infinidade de templos, da cor do tijolo que lhes dá forma, mais ou menos inteiros, mais ou menos altos, numa zona de oração a que alguém chamou “Litte Bagan”. De regresso a “casa”, há ainda tempo para saudar os gatos que fielmente guardam o velho mosteiro Nga Phe Kyaung, também ele de madeira, também ele flutuante.
Ainda antes de nos termos aventurado pelo lago, guardamos a memória de um dia descontraído, de bicicleta, a descobrir os encantos de quem vive nas suas margens. Os mesmos 12km, mas agora sem tempo contado, com a única certeza de nos deixarmos levar pelo que o dia nos trouxer. Meia hora de futebol de pé descalço, uns quantos momentos a tentar vencer a timidez de pequenos monges, e mais uma coleção de sorrisos e acenos de quem nos vê passar, de quem nos vê parar, de quem nos vê felizes. Selámos o dia com um brinde de vinho tinto, na sua casa, a Red Mountain, com o sol a estender-se, também ele rendido, no leito verde-terra das montanhas.
A uma hora de carro de Nyaung Shwe ergue-se a cidade de Taunggyi, capital do Shan State. Não foi ao acaso que decidimos estar por perto durante o Balloon Festival, um dos maiores festivais do país, que celebra, durante 7 dias e 7 noites, o fim da época das chuvas. O caminho até ao recinto deixa já adivinhar o ambiente festivo que nos aguarda: barracas de comida tradicional, de roupa, de música, de diversões e dos mais diversos produtos – incluindo demonstração de aspiradores – dividem a atenção dos visitantes, que chegam das várias aldeias vizinhas. Passa pouco das 16h e já é evidente a multidão que todos os anos acolhe ao evento. Ao cair da noite, é a luz dos carrosséis e das barracas e bares que ilumina o caminho a quem procura o melhor lugar para assistir à principal atração do evento: o concurso de balões de ar-quente, gigantes, pintados à mão, que têm como principal missão espantar os espíritos malignos, enquanto deixam a população em êxtase e os turistas de queixo caído, quando, já no ar, começa a disparar em todas as direções o fogo de artifício que levam acoplado. É um verdadeiro espetáculo de som e de luz, com a adrenalina de ter foguetes a rebentar mesmo por cima das nossas cabeças, enquanto desejamos mentalmente que os espíritos malignos não se vinguem em nós. A imagem mais bonita que guardo desta noite é, contudo, a que antecede todo este aparato: milhares de mãos estendidas ao céu, a quem entregam os seus balões e os seus desejos e que, em conjunto, transformam “aquela coisa azul escura” num quadro gigante de estrelas anãs, uma pintura de tal forma deslumbrante que quase nos esquecemos do quão real ela é.
HSIPAW DA SELVA E DA CASA NA ÁRVORE DA MONTANHA
A viagem do Inle Lake até Hsipaw é, em determinados momentos, um verdadeiro teste de nervos, mas a nossa experiência nesta cidade do norte fez valer cada quilómetro de susto. O sol já se estava a despedir do dia quando, por fim, sentimos o chão de Hsipaw, e com dois dias de trekking já planeados, ficou o desejo por aquelas horas vazias de afazeres, onde podemos apenas vaguear e sentir verdadeiramente a cidade de quem nela escreve a história dos seus dias. Ainda nessa noite, contudo, oferecemos ao corpo uma das melhores refeições da viagem, no aconchego do jardim da Ms. Popcorn. As motas são, aparentemente, o transporte de eleição por ali, e ter luzes não parece ser um requisito, principalmente quando o pendura faz a gentileza de apontar uma lanterna para a estrada.
Hsipaw trouxe-nos de volta ao abraço da natureza. Durante dois dias, percorremos 28km de campos de cultivo sem fim; de árvores imponentes que, só por si, fazem a paisagem; cruzámos aldeias com pouco mais que duas mãos cheias de habitantes; atravessámos – entre subidas e descidas, e mais subidas e subidas – a montanha que, nessa noite, nos deu guarida, numa casa na árvore diretamente recortada dos livros para crianças. O segundo dia de trekking foi pelo coração da selva, pintado de um verde bem vivo que o ar húmido alimenta, entre jogos de equilíbrio sobre as pedras de um riacho que não nos quis perder de vista.
Jimmy, um rapaz de 21 anos, que guiou o grupo neste par de dias juntamente com Eric (o rapaz das tatuagens originais que acontecem sempre em noites regadas a água de arroz: “idiot”, “age is just a number”, “the grass is always greener on the other side”), deu-nos a conhecer um país que pensa deixar, com a irmã, assim que a vida se alinhar nesse sentido. Os conflitos internos que Myanmar atravessa, embora não se façam sentir nas cidades por onde passámos, continuam bem reais, com grupos organizados a pressionar pela independência financeira do Shan State, a somar à influência poderosa da China por um lado e as quezílias com o Bangladesh pelo outro, deixando o país num sufoco invisível mas sempre presente, ainda que o tratado de paz a 10 anos que o governo assinou com um dos grupos tenha trazido algum espaço para respirar fundo. Ainda assim, Jimmy pensa sair, talvez para a Austrália quem sabe, já que as vizinhas Tailândia e Malásia não oferecem boas perspetivas como em outros tempos, em que o trabalho por fazer era ainda superior às mãos que se disponibilizavam. Mesmo com estas preocupações de pessoa crescida, reflexo de uma maturidade acima do esperado para a idade, Jimmy tem um sorriso feliz, e quando lhe digo que vive no país das borboletas grandes e coloridas, ele responde com orgulho: “devias vir cá quando caem as primeiras chuvas, aí sim, é que elas voam”. Trago-te comigo no coração Jimmy – que encontres a paz que procuras para o teu caminho, que o teu povo possa um dia conhecê-la também.
MANDALAY, AGRIDOCE MANDALAY
A nossa jornada de Hsipaw até Mandalay é, só por si, digna de um capítulo: 6h num comboio local, que abana quase ao ritmo do leque da senhora que vai no fundo da carruagem, passaram bem depressa entre leituras, fotografias, e olhares colados à janela para não perder o que de melhor a viagem poderia oferecer. Depois de dois dias de trekking nas pernas, um dia de comboio que não exigisse mais de nós do que espreguiçar e mover os olhos foi a segunda melhor coisa que nos aconteceu, porque nada supera a minha sensação de incredulidade / felicidade profunda quando descobrimos que o nosso hotel em Hsipaw tinha um jacuzzi, no terraço do último andar, aberto durante a noite, e gratuito para hóspedes. Eu sei, somos uns sacaninhas com sorte.
De volta ao comboio, fica aqui um pouco de serviço público: é preciso, a meu ver, baixar as expetativas sobre o viaduto Gokteik, a principal motivação para muitos turistas escolherem chegar ou sair de Hsipaw recorrendo a este meio de transporte. Sim, ele é gigante, e sim, é alto e vertiginoso, mas não é especialmente bonito, e o mesmo posso dizer da paisagem de quem se faz acompanhar. Eu repetia aquela viagem, sem pestanejar – mesmo com os tremeliques do comboio – mas não pelos 5 minutos nada orgásmicos de Gokteik. O comboio levava como destino Mandalay, mas por sugestão do Jimmy saímos umas estações antes, em Pyn Oo Lin – o que nos pouparia umas 3 ou 4 horas de caminho – e seguimos viagem até Mandalay num táxi fora de série que, na presença de trânsito devido a acidente, tem a opção de andar em contra-mão durante pelo menos 10 minutos – e sobreviver – para chegar ao destino com imperativa pontualidade.
Mandalay é sinónimo de agitação, carros, tuk-tuks e motas com famílias empilhadas. A imagem mais caricata que guardo a este respeito é de uma mãe a amamentar, no banco de trás da mota, enquanto o chefe de família conduzia. Capacetes são sobrevalorizados, é preciso que se acrescente. Os passeios são apenas prolongamentos dos diferentes tipos de negócios de beira da estrada. Diz o Talky que estes não foram feitos pelos ingleses, ao contrário de Yangoon, talvez por isso o povo aproveite todos os m2 disponíveis. Andar a pé em Mandalay é, por isso, uma aventura que não recomendo por muitos quilómetros.
Myanmar – mais especificamente a região norte – é terra de pedras preciosas, uma das razões dos conflitos que a assaltam, como seria previsível. Jade é a pedra que mais se vê a ser comercializada pelo país, e Mandalay é especialmente conhecido pelos “Jade Markets”. O principal acontece diariamente, na rua 87, juntando no mesmo espaço comerciantes, homens de negócios – muitos deles da vizinha China – e alguns turistas curiosos. Os vendedores alinham-se em mesas sucessivas, expondo as suas melhores pedras, com todo o potencial circunscrito nos círculos que desenham sobre elas. Os compradores, armados com lanternas de bolso, apontam os feixes na direção dos círculos, à procura da fortuna que os trouxe ali. Na verdade, o que eles esperam encontrar é uma espécie de jade bem rara – e por isso mais valiosa – chamada jadeíte. De toda a jadeíte espalhada pelo mundo, cerca de 70% tem “carimbo” de Myanmar. As “sobras” de jade que não alojam fortunas são, também ali, alvo de dedicação, corte e polimento, em mesas de madeira contíguas, para serem mais tarde comercializadas em forma de joalharia, serviços de chá ou estátuas de Buda.
O relógio ainda mal se tinha acomodado às 10h00 daquela manhã, quando a agitação do Htoo-Htoo se fez sentir. Como guia responsável que é, não nos queria fazer perder um momento especialmente aguardado pelos turistas: a hora de almoço dos monges do mosteiro Mahagandayon, em Amarapura. Quando Htoo-Htoo mencionou, uns dias antes, no comboio, que algures em Mandalay iríamos ver os monges na sua hora de almoço, às 10h30 de um qualquer dia, lembro-me que sorrimos ao construir a imagem desse momento. Lembro-me também de, a certo ponto, lhe termos confessado que, nesta nossa ainda recém-nascida aventura por Myanmar, fazíamos questão de fugir dos “teatros” para turistas, especialmente no contacto com os monges. Htoo-Htoo, um rapaz com um coração tão bom como a sua visão para o negócio, tranquilizou as nossas preocupações: esse não seria o caso a bordo da sua orientação. Podem, por isso, imaginar a nossa deceção, quando, naquela manhã em Mandalay, demos por nós rodeados por turistas famintos do melhor lugar, da melhor foto, do melhor ângulo, conquistados à custa das piores maneiras, servidas em pratos de pisadelas e encontrões. Ainda estava a recuperar destes aperitivos quando os vejo chegar: centenas de monges, com as taças cheias da caridade alheia, regressavam agora ao mosteiro, num momento de suposta solenidade e respeito, violado incessantemente pelos pares de olhos que, em jeito de abutre, se alimentavam dele sem pinga de consideração. Se ao menos soubessem comer de boca fechada. Aquele foi o almoço mais difícil de digerir em Myanmar. Ao abandonar a “mesa” no caminho de regresso, dei por mim a pensar no manto de frieza com que aqueles monges se devem ter habituado a vestir para se imunizarem contra esta sociedade predadora de um dizer que fez, de um mostrar que esteve, de um estar sem sentir. No final daquele espetáculo que preferia não ter assistido, muito de mim era tristeza. Confessei-o ao Htoo-Htoo minutos mais tarde, quando vagueávamos entre as paredes de madeira do mosteiro Shwe Inn Bin. Talvez um dia volte a percorrer as ruas que atravessam os 12 hectares do mosteiro centenário de Mahagandayon. Talvez ao nascer do sol, ou antes mesmo do rufar do tambor que o anuncia. Talvez aí possa ficar sentada num qualquer canto, na companhia de um gato sociável, a observá-los, em silêncio, nos seus rituais diários, enquanto limpam ou arrumam o mosteiro, enquanto estudam, meditam ou dormem a sesta. E talvez volte a sorrir com o mesmo entusiasmo com que ingenuamente me deixei convencer naquele comboio.
Aproveitei a onda de confissões com o Htoo-Htoo para lhe fazer algumas questões que me acompanhavam nos últimos dias. “É normal os monges fumarem?”. “Buda não diz que é proibido fumar.” – apressa-se Htoo-Htoo num misto de surpresa e atrapalhação – “Mas desincentiva todos os comportamentos que te alterem o estado de consciência, como o álcool ou o consumo de droga. Muitos monges já fumavam antes de entrarem para o mosteiro, e às vezes é difícil largar o vício”. Compreendo. Da mesma forma que é difícil para uma criança resistir a uma arma de brincar, pensei eu, a lembrar-me do pequeno monge que vi em Taunggyi e sem imaginar que voltaria a ver a mesma imagem dias mais tarde, em Salay. Afinal de contas, são apenas crianças. É esperado que qualquer miúdo birmanês, entre os 7 e os 13 anos de idade, entre para um mosteiro por um período de tempo. Alguns ficam poucas semanas, outros vários meses, outros uma vida. A decisão é deles. “Eu fiquei três dias” – revela Htoo-Htoo. “E só não foram dois, porque o monge responsável me incentivou a cumprir um número ímpar, já que números pares no mosteiro eram mau karma”. Na verdade, os rapazes são encorajados a passar pelo mosteiro duas vezes na vida: uma antes e outra depois dos 20 anos. Não é por isso de estranhar que Myanmar seja um dos países com maior percentagem de monges e freiras, embora os números estejam a diminuir, ao que parece. “Antes a educação não era gratuita, e por isso as famílias mais pobres enviavam os seus filhos para o mosteiro para terem acesso à educação.” Ainda assim – e espero não ser injusta ao confessá-lo – o Budismo que testemunhámos pelo país foi claramente contagiado por uma sociedade consumista, vaidosa, e tecnologicamente dependente – verdadeiras tentações ao cumprimento rigoroso do Vinaya, o código de 277 regras da disciplina monástica. Um pouco por todo o país, dentro ou fora dos mosteiros, encontrámos monges de telemóvel na mão, óculos de sol no rosto, ou a pedir dinheiro. Este último é um tema especialmente sensível. “A disciplina monástica diz que os monges não devem tocar em dinheiro, muito menos pedi-lo.” – responde-me Htoo-Htoo quando lhe pergunto porque ignorou o monge que, horas antes, se tinha aproximado de nós no Jade Market, com um olhar carente de humildade, enquanto esfregava uma nota entre dedos. “Muitos dos que vês nestes mercados podem nem sequer ser monges. Às vezes vestem-se assim para conseguir o que querem”. Um monge budista não está autorizado a trabalhar em troca de salário, por isso depende da caridade. “Os monges saem em grupos grandes, durante o dia, e percorrem as aldeias vizinhas para receberem a comida que os locais querem oferecer. Quando os vires a pedir dinheiro, sozinhos ou aos pares, desconfia.” Ganância ou ambição, talvez. Ou quem sabe por necessidade, a pobreza é uma realidade de muitas famílias em Myanmar. “São humanos, Diana. São pessoas como nós.” – ecoa uma voz algures na minha cabeça – “Humanos erram, humanos pecam, humanos falham.” Foi mais ou menos assim que, de uma assentada, caí uns quantos andares do alto desta minha utopia de encontrar um “Budismo perfeito” em monges que afinal são apenas pessoas como nós, inevitavelmente imperfeitas.
As duas paragens seguintes rasgaram-me a capa de turista para me limitarem à minha condição de mulher. “Ladies are not allowed to enter.” podia ler-se numa placa colocada na base de uma escadaria que conduzia à entrada de uma bonita pagoda branca e, mais tarde, nos lábios de Htoo-Htoo, quando já na Mahamuni Pagoda, nos pediu para aguardar, sentadas, em frente ao altar, a vê-los colocar folhas de ouro no rosto de uma imponente estátua de Buda, a qual, por sua vez, nos observava com uma serenidade implacável perante a agitação pré-cerimonial que já se fazia sentir. Colocadas as folhas de ouro, o homem tem direito a pedir um desejo. Enquanto observava o vaivém constante dos fiéis, o meu pensamento apanhou-me desprevenida e, quando dei por ela, já tinha pedido um desejo também. Desejei, naquele momento, por um mundo cada vez mais igual para todos.
Htoo-Htoo guardou, talvez sem querer, o melhor daquele dia para o fim. U Bein Bridge foi a nossa sobremesa. Enquanto caminhava pelos 1.2km de madeira, experimentei uma sensação muito familiar par aquele dia: o desejo profundo de voltar ali numa altura do dia em que não houvesse mais humanos que barcos no rio – algo apenas possível, imagino, ao nascer do sol. Valeria o esforço, decidi. Ainda assim, guardo com carinho o momento em que o céu boicotou o pôr do sol de todos os turistas que por ali se atropelavam, e me ofereceu uma meia hora abrigada numa das poucas “cabanas de madeira” que aparecem ao longo da ponte, a ver pessoas a fugir para onde o céu não as encontrasse, ao som da chuva implacável e de uma dezena de trovões que se escapavam por entre as fotografias.
10 de novembro, 8 horas e umas dezenas de minutos e, no “porto dos turistas” de Mandalay, quem fazia a festa eram os locais. Chegavam em série, montados nas suas carrinhas, onde se empilhava com um equilíbrio invejável tudo o que numa cerimónia festiva pode faltar. A música tocava mesmo para quem não a quisesse ouvir, as crianças oscilavam entre os afazeres típicos da idade e os olhares pasmados ou as risadas atrevidas perante os poucos turistas que, como nós, se aproximavam sem vergonha. Entre cumprimentos e fotografias, todo o cuidado era pouco para não esbarrar ou interromper passagem aos homens que, em braços, carregavam agora os barcos, libertando as carrinhas para outros compromissos. Eles lá ficaram, e nós a vê-los a acenar da margem, já no barco que nos prometia levar até Mingun. Uma hora depois a promessa estava cumprida, e não havia muitas decisões a tomar. A Pahtodawgyi Stupa e a Hsinbyume ou White Pagoda são as paragens óbvias para quem visita a outra margem do rio.
Pahtodawgyi Stupa, pelos seus supostos 150 metros de altura, que propositadamente não se concretizaram, segundo conta a história, por culpa de uma profecia que anunciava que “assim que a construção terminasse, o país desapareceria” ou, numa versão paralela, “assim que a construção terminasse, o rei (que a ordenara) morreria”. Certo é que a construção foi desacelerada para que a profecia não levasse a melhor, e que anos mais tarde a vida do rei conhecia o fim, mas esta stupa de tijolos, ainda assim a maior do mundo, nunca pôde dizer o mesmo.
Hsinbyume, a uns minutos a pé dali, é um verdadeiro íman de turistas que se desfilam entre as ondas sucessivas, inspiradas no Monte Meru, na Índia, um símbolo sagrado do Budismo. Também nós nos deixámos ir nas ondas, e o arrependimento chegou quando, já a uma distância de segurança da multidão, senti o tempo a escassear enquanto tentava esculpir na memória a imagem daquela beleza pintada de branco.
Já de regresso a Mandalay, foi ainda de branco que se pintou o nosso deslumbramento, ao percorrer os corredores simétricos que separavam as 729 placas de mármore do Kuthodaw Pagoda, também chamado The World’s Largest Book, já que, em cada uma das mais de setecentas placas com mais de metro e meio de altura, estão gravados os ensinamentos budistas, que assim se perpetuam por gerações. Foi aqui, aos pés do Mandalay Hill que pacientemente nos aguardava, que Htoo-Htoo nos falou um pouco sobre a história da Birmânia, e de como Myanmar – o seu nome atual – é na verdade o nome original, um nome inclusivo para todos os grupos étnicos do país, e não apenas representativo do grupo maioritário, os Bamar ou Burmans. Já no interior do templo, o vento fazia-se sentir sem se impor, mas com atitude suficiente para nos prender os olhos na fila de bandeiras que se baloiçavam à nossa passagem. “A nossa bandeira tem três cores” – disse a voz do sentido de oportunidade de Htoo-Htoo – “o amarelo representa a solidariedade, o verde a tranquilidade, e o vermelho a coragem”. Qual será a cor da gentileza?
O caminho para o Mandalay Hill foi feito a uma velocidade superior à desejada para um percurso acidentado. Se o tempo o permitisse, arrisco dizer que subi-lo ou descê-lo a pé valeria o esforço empregue na tarefa. Ainda assim, não poderia imaginar melhor forma de terminar o dia em Mandalay: sentada, no chão do templo, com o som da natureza a abafar por completo o ruído dos turistas ou dos locais que por ali paravam, disfrutando da vista panorâmica sobre a cidade. Foi nesse chão que o Htoo Htoo me contou, com um orgulho desmedido, a sua versão detalhada da história de vida de Aung San Suu Kyi, um ícone do país, uma mulher com os valores da bandeira, premiada com o Nobel da Paz em 1991, e autora de um dos livros que ele me recomendou, a meu pedido, “Letters from Burma”. E onde me revelou que, de acordo com a cultura birmanesa, as raparigas devem esperar 3 anos antes de decidirem namorar com um rapaz, de forma a perceberem previamente os princípios éticos com que este se rege. Foi também nesse chão que conhecemos Jao Pin, um tímido monge de 19 anos, que, como outros por ali, aparecem frequentemente para praticar o inglês com os turistas que se põem a jeito. Htoo-Htoo ajudou-o a vencer a timidez, e num instante se passaram vinte minutos de perguntas e respostas, sorrisos e mal-entendidos, que culminaram num adeus verdadeiramente feliz e agradecido. Obrigada Mandalay, por te redimires assim. Também tu és humano, também tu, aos meus olhos, imperfeito. Mas é sincero quando te digo que, dias depois, ainda trago em mim o silêncio que me ofereceste no meio de uma agitação encoberta pela paz do Mandalay Hill.
O CHARME DE BAGAN
Bagan acolheu-nos, a rebentar pelas costuras, na véspera de um grande evento: o Tazaugdine Festival of Light. Este “festival das luzes”, acontece por todo o país, e em Bagan reúne todas as atenções na Shwezigon Pagoda, o templo de ouro (shwe) em cujo chão (zigo, também sinónimo de vitória), os desejos se concretizam. Assim era para o rei, segundo a história, e assim acreditam as centenas de locais, miúdos e graúdos, que, naquela noite, ali se juntaram à luz de milhares de velas, em oração, guiadas pelo som dos mantras que se faziam ouvir um pouco por todo o templo.
Horas antes nesse dia, fomos confrontados com uma verdadeira mudança de planos. A cidade que escolhemos para terminar a viagem, Mrauk-U, estava à distância de 18 horas de autocarro, metade das quais em estradas de cortar a respiração. Nós já o sabíamos, e ainda assim decidimos que valeria cada volta no estômago. O que não esperávamos, embora estando conscientes que seria uma “zona crítica”, era que o conflito na região estivesse tão aceso por aquela altura. Reavaliámos opções: a praia em Ngapali continuava a não ser uma opção pelo tempo que iríamos perder em viagem, a poucos dias de regressar a Portugal. Decidimos, por fim, aproveitar o que de melhor Bagan teria para oferecer, num ritmo bem mais descontraído, que combinava na perfeição com o final de uma viagem intensa como esta. Reservámos um bom hotel com uma piscina bastante apetecível face aos 30 graus previstos e confirmados – um pequeno luxo que em Myanmar não faz grande moça no orçamento, especialmente quando se viaja em casal. Por pouco mais de 10 dólares, troca-se um quarto de hostel com casa de banho privativa por uma piscina de hotel com quarto incluído, e um pequeno almoço digno da cidade birmanesa onde mais turistas acordam para ver o nascer do sol.
Ser feliz em Bagan tornou-se, assim, ainda mais fácil. Nesta cidade cor de tijolo é tão fácil encontrar templos como pessoas. Andar a pé não é opção, e a bicicleta só está ao alcance dos mais resistentes, especialmente pelo calor que se faz sentir. O segredo está em fazer o que todos fazem: alugar uma e-bike, sair da cama a horas indecentes para ver o nascer do sol por entre os balões de ar quente que o tentam seguir; aventurar-se nos templos mais movimentados quando ainda estão a despertar (leia-se: sem multidões); regressar ao hotel para tomar o pequeno almoço; perder-se nas estradas de terra batida entre mais não sei quantos templos cujo nome não consta no mapa; arrefecer o corpo e consolar a alma com mergulhos quanto baste; abrir o maps.me para decidir qual o melhor local para sentir o aconchego de um sol que se põe; deixa-se guiar pela luz intensa dos grandes templos de ouro que agora desafiam a escuridão no regresso a “casa”; jantar num qualquer restaurante da “restaurant street” de Nyaung U com a certeza que será provavelmente muito saboroso e incrivelmente económico; deitar cedo e adormecer sem preocupações e necessidade de planos, já que amanhã é só fazer bis. Simples assim, tal é o charme desta cidade.
Contudo, a nossa curiosidade incompatível com boa vida por mais de dois dias seguidos quando em viagens como estas – impensável, eu sei – levou-nos, numa ocasião, a mais uma armadilha turística perfeitamente dispensável: a visita à Minnanthu Village. Se não fosse a senhora amável do posto de turismo de Old Bagan onde entrámos à caça de um mapa decente da cidade, não teríamos sequer ouvido falar dela, mas o discurso de “se quiserem ir a uma vila e estar com as pessoas locais” convenceu-nos de imediato. Valeu pelo miradouro logo à entrada da vila, para compensar a incredulidade que me subiu à cara quando, pela primeira vez naquela viagem, uma mãe exibe a filha pequena devidamente ornamentada e me pergunta se lhe quero tirar uma foto a troco de dinheiro. “Oh My Buda!”, penso eu, personificando o taxista que, duas ou três noites antes, se fingiu escandalizado pelo nosso talento a regatear preços inflacionados. Mas nem tudo são más notícias: fugir da boa vida também nos dá boas surpresas. Uma delas dá pelo nome de Salay, uma pequena cidade a uma hora e meia de carro de Bagan. Em Salay reencontrámos a pacatez do Inle, que já aguçava a saudade. Salay deu-nos as crianças tarzan, o espetáculo infantil inesperado, os mosteiros quase abandonados, uns minutos a praticar o desporto tradicional do país com os miúdos de pé descalço, o monge e os gatos que guardavam verdadeiras relíquias do Budismo e uma ventoinha de fazer suspirar.
Já em Bagan, antecipámo-nos aos primeiros minutos de sol de um dos dias para ver a primeira recolha de alimentos dos monges da cidade. Não existe um ritual muito vincado em Bagan – explicaram-nos no hotel – mas eles reúnem-se, junto ao mercado, de madrugada, para recolher as oferendas de quem quiser contribuir. Soube a pouco, mas valeu cada hora perdida de sono. Sem rituais vincados, mas também sem farsas, e sem ruído. A vida como ela é. E como o sol ainda se demora, embrenhamo-nos na escuridão de um mercado que já vive à luz das lanternas. A cidade prepara-se para mais um dia, enquanto nós nos preparamos para regressar. Obrigada Myanmar, por este sentimento bom que trago comigo. Foste um verdadeiro tiro ao lado nas minhas escassas expectativas, mas a tua gentileza, em golpe de cupido, acertou-me em cheio no coração.
Fotografias da autoria de:
Diana Lopes
Pedro Santos