Fechem os olhos por um instante e imaginem como seria o mundo no seu estado mais puro, mais virgem, mais autêntico. A Islândia podia bem ser esse lugar que acabaram de imaginar. Uma casa perdida aqui e ali, e uma rede de estradas que rasgam a paisagem – sem, contudo, lhe roubarem a beleza – são as poucas marcas da pegada humana que sobressaem neste pedaço de paraíso. Tudo o resto, é a Natureza na sua essência.
Ao volante de uma caravana improvisada, em cada curva e contracurva a expectativa cresce, as surpresas acumulam-se, a sensação de deslumbramento faz cair o queixo, vezes e vezes sem conta. A Islândia nunca desilude.
Agosto já vai a meio, é verão na ilha. Mas os retalhos do manto branco que cobrem as montanhas não deixam esquecer os invernos longos e rigorosos de que tem fama. Quando o sol se afirma, o branco sobressai e as nuvens, rendidas, revelam o glaciar na sua máxima imponência. É de perder as palavras. E de fazer cair o queixo, outra e outra vez.
A viagem segue por planícies imensas, de um verde que seduz de tão intenso que é. Aquele verde que nos convida, eternas crianças, a rebolar relva fora, até que o corpo, por fim, se imobilize, de sorriso aberto, a inventar desenhos a partir das nuvens que cruzam o céu e que, num ritmo pasmacento, seguem, determinadas, o seu caminho. Às tantas, a chuva aparece sem aviso prévio, relembrando o quão inesperado pode ser o clima na ilha. E o verde reluz, agradecendo à chuva – é ela que lhe alimenta a beleza, é ela que o torna tão verde, tão autêntico, tão atraente.
A cada par de km’s, uma cascata irrompe montanha abaixo – fica difícil manter os olhos na estrada, não há condutor que lhes fique indiferente. Não fosse o nosso tempo de viagem limitado, as paragens multiplicar-se-iam. Viajar na Islândia é tão simples assim: conduz-te (ou deixa-te conduzir) em qualquer direção, e não te apresses. Logo logo, vais querer parar o tempo e cumprimentar a Natureza nas suas mais diversas versões.
Esta não é terra de “calor” – sim, com aspas, não fosse o seu coração bem vulcânico – mas nem por isso os visitantes hesitam em atravessar cascatas em busca da melhor fotografia. Com um pé saltitante de pedra em pedra, a molha é garantida. Já da “melhor fotografia” não se pode dizer o mesmo. Esta ilha é bem ingrata, até para os fotógrafos mais talentosos, que se alinham, firmes como as montanhas que os resguardam, câmaras em punho e tripés enraizados no solo, miradouro após miradouro. Mas as fotografias falam tão baixo, ao lado de uma Natureza que grita, selvagem. Possam os olhos guardar imagens eternas, possa a nossa memória não nos atraiçoar.
Nos dias mais longos, a noite cai e nós ainda em movimento. A luz que resta de um sol já posto é o nosso candeeiro numa estrada em que a iluminação se resume aos refletores. Passam-se meias horas sem que se avistem sinais de civilização. As nuvens, longas e densas, dividem montanhas a meio, acabando por se esfumar em pedaços de algodão. A certo ponto, uma casa. Luz de presença ligada e carro à porta. Se dúvidas havia, ficam agora desfeitas – aqui vive mesmo alguém. Alguém que acorda, todos os dias, com uma paisagem que deslumbra em amplitude de ângulo giro. Será que estas pessoas se “habituam” a esta tela, como nós tendemos a habituar-nos ao cenário que nos envolve dia após dia? Qual terá sido a última vez que terão experimentado esta sensação de plenitude, de sedução? Será que ainda algo os surpreendente perante tamanha imensidão? Quantas vezes serei eu ainda surpreendida depois desta viagem para um mundo que parecia já só existir em sonhos? As respostas pouco importam, mas estas são as perguntas que, inevitavelmente, nos assaltam. A beleza natural desta ilha é algo simplesmente indescritível.
De quando a quando, os aglomerados de civilização dão um ar da sua graça, acolhendo os visitantes. Assim foi logo no primeiro dia, um domingo à noite chuvoso e pacato, como os domingos à noite devem ser. O frio que se fazia sentir na capital empurrou-nos para dentro de um restaurante local, atrás do famoso caldo de carneiro. O relógio já passava das 22h locais, a especialidade da casa estava esgotada. Não obstante, havia um banco corrido de madeira à nossa espera, e o corpo aqueceu ao sabor de um caldo de marisco, e ao som de boa música.
Já a sul, Vik foi o destino das grutas de gelo: “a gruta que vamos conhecer desaparecerá dentro de 4 meses. Tem sido assim nos últimos anos, o glaciar cede 12 a 13 metros por ano”, dizia David, o guia com sentido de humor que nos acompanhou nessa manhã. Mas aquele não era o momento para rir: “Tem tanto de triste como de desafiante para nós. Cada ano temos que descobrir uma nova gruta.” Silêncio geral. A tristeza momentânea do grupo escondeu, por instantes, a excitação que os trouxe até ao íntimo das montanhas e, daí, ao interior de uma pequena e efémera gruta de gelo.
A viagem rumo a nordeste intuía-se longa e difícil. Hofn tinha ficado para trás há mais de três horas e, após períodos alternados de sol e chuva que duravam pouco mais que uns minutos, o nevoeiro começava agora a densificar-se, anunciando-nos, visitantes, à montanha que teríamos que atravessar. Assim se manteve, sem tréguas, quando nos rendemos ao cansaço numa piscina termal, ao ar livre, já no topo da montanha. O frio que se fazia sentir depressa se desvaneceu quando, imersos em água a 37°C, nos apercebemos que, naquele momento, éramos apenas nós e uma imensa nuvem cinzenta que, nos momentos menos egoístas, nos deixava saudar a nossa anfitriã.
As estradas para Norte cruzando o lado Este da ilha revelaram-se bem mais rudes que a famosa N° 1, Ring Road. Aqui não há como e porque ter pressa, não fosse a paisagem igualmente deslumbrante. Aos degradês de verde ou castanho criados pela incidência da luz solar juntavam-se agora pinceladas do amarelo das flores que cobrem as planícies, recordando-nos que por aqui é verão. O azul, esse, é presença constante. Foram km’s e km’s de nada. E, ao mesmo tempo, de tudo.
Já em pleno coração da região norte, a linha do horizonte pinta-se de nuvens de fumo, dispersas, que emergem das montanhas castanhas, rachadas, esponjosas. As águas de Myvatn estão tão calmas e transparentes que espelham o céu ao máximo detalhe. O dia amanheceu envergonhado, mas o sol vai agora alto e nada tímido. As crateras sucedem-se, de tamanhos diferentes, homenageando as origens da ilha. As cascatas, majestosas e irreverentes, não prescindem do seu lugar. Água e fogo medem forças aqui, mantendo uma simbiose linda de se observar.
O calendário marcava 26 de Agosto, a viagem ia a meio. Eram aproximadamente 19h e havia ainda 2h de estrada a percorrer até ao parque de campismo dessa noite. Ainda assim, a curiosidade não nos deteve. Nem mesmo quando percebemos que, a certo ponto, nos esperava uma caminhada de 2km, ao longo de uma estrada secundária só acessível a 4×4. Abençoada curiosidade que venceu o cansaço e nos conduziu à que seria, para mim, a mais bonita das cascatas que vi. No pódio estava, até então, a Seljalandsfoss, um véu de água que podia ser contornado, permitindo que os tons de aguarela da paisagem fossem salpicados com a força da água que caía, enquanto o sol, audacioso, desenhava um arco-íris à nossa passagem. Um verdadeiro cenário de mundo encantado, que fazia as delícias dos inúmeros visitantes. A Aldeyjarfoss, por seu lado, recebeu-nos na privacidade da sua casa. Escondida por montes e rochedos, revelava-se apenas aos mais atentos, aos que escolhiam ir propositadamente ao seu encontro. Essa era parte da sua beleza, a forma como se encobria na montanha e, ao mesmo tempo, afirmava o seu caminho entre as rochas de formas ora aleatórias, ora minuciosamente geométricas, como se tivessem sido traçadas a régua e esquadro pela lava de outrora e, mais tarde, pela erosão que lhes conferia os retoques finais. Assim se apresentava, forte, límpida, selvagem e inacessível. Um verdadeiro grito da Natureza.
Ainda com deleite nos olhos, voltámos à estrada rumo a Dalvik, atravessando pequenas grandes cidades, piscatórias na sua maioria, que nos fizeram pensar que a vida humana nesta ilha se distribui essencialmente em 2 pólos opostos: Norte e Sul. A lua, plena e bem redonda, preenchia a noite como um verdadeiro candeeiro que ilumina toda uma sala de estar. Seria seu – e bem merecido – todo o protagonismo da noite, não fosse o esgar de aurora boreal que, num ápice, rasgou o céu. Incrédulos, com o jantar em lume brando, permanecemos, imóveis e deslumbrados, entregues à sorte que não acreditávamos ter em pleno mês de Agosto. Apareceu por duas vezes, com umas horas de intervalo, e sempre tímida. Mas apareceu, branca e, logo logo, daquele verde esperança. Que dia este, que viagem esta. Que sortudos somos nós por esta casa linda em que vivemos.
Os fiordes do oeste esperaram, pacientes, pelos últimos dias da nossa viagem. Não conseguiria imaginar, a este ponto, que existia na Islândia uma zona ainda mais virgem, mais pura, do que algumas que tínhamos já conhecido. Surpreendentemente, é exatamente isso que se pode esperar do (Nor)Oeste: uma região árida, de um verde mais seco, mas com o beijo constante de um mar salgado e sereno. As montanhas sucedem-se, como muralhas intransponíveis, recortadas apenas pelo ziguezaguear de estradas, muitas das quais ainda em gravilha. Os poucos visitantes que por cá se aventuram vêm, normalmente, em busca do “véu da noiva”. Mas, por cá, esse não é o único romance.
À noite, mergulhados nas águas quentes de uma piscina natural com vista para o mar, perdemos a noção do tempo, de olhos postos no céu. Aquele era o local perfeito para rever a aurora boreal. A paciência foi recompensada. O silêncio – a banda sonora perfeita para aquele momento – foi quebrado pela excitação das “northern lights”, novamente tímidas e fugazes. A lua, por seu lado, brilhante e fiel, iluminou-nos os passos quando não se conheciam outras luzes, até ao momento em que, exaustos, permitimos que o silêncio voltasse a tomar conta da noite.
30 de Agosto: o dia de regressar a Reykjavic, capital e, de longe, a maior amostra de civilização que se vê pela ilha. Vários foram os momentos ao longo da viagem em que cheguei a pensar que havia na Islândia mais turistas que habitantes. A Blue Lagoon, raínha das hot springs, reconhecida como uma das 25 maravilhas do mundo, é mais uma das grandes sobreviventes ao turismo de massas. Talvez o segredo sejam os 9 milhões de litros de água que a compõem, que se renovam a cada 40 horas, onde tudo se dilui, desde as mais pequenas excentricidades e caprichos, aos grandes pecados capitais. Ou talvez seja a sílica, guardiã daquele azul tão límpido, tão genuíno como as suas raízes vulcânicas, que jamais se deixará corromper. E isso, isso sim, é que a torna tão “maravilhosa”.
Foram 13 dias a traduzir em imagens a palavra Natureza. A replicar e expoenciar cada um dos seus 4 elementos. A Natureza que deslumbra e tranquiliza. A Natureza que nos torna tão pequenos quando mergulhados na sua imensidão. A Natureza perfeita que, revelando-se nos nossos sonhos, pode, afinal, ser tão real. A Natureza que nos inspira, que nos faz querer mimá-la, cuidá-la, como ela, diária e incansavelmente, nos mima e cuida de nós. Não será, afinal, por acaso, que muitos lhe chamam de Mãe.
19 de Agosto
Reykjavík
Jantar: Icelandic Street Food
Estadia: Reykjavík Hostel Village
20 de Agosto
Thingvellir National Park
Öxarárfoss Waterfall
Geyser Strokkur
Estadia: Langbrók Camping
21 de Agosto
Road 261 perto de Langbrók
Gljúfrafoss Waterfall
Seljalandsfoss Waterfall
Skógafoss Waterfall
Dyrhólaey (puffins)
Estadia: Vik Camping
22 de Agosto
Ice Cave
Laufskalavaroa
Fjaðrárgljúfur
Kirkjugólf
Estadia: Tjaldstæðið Kirkjubaer II Camping
23 de Agosto
Skaftafell | Vatnajokull National Park
– Trilho Svartifoss Waterfall
– Trilho Skaftafellsjökull Glaciar
Fjallsárlón
Jokulsárlón (Diamond Beach)
Estadia: Höfn Camping
24 de Agosto
Stokksnes
Laugarfell (https://laugarfell.is/)
Estadia: Laugarfell (parking)
25 de Agosto
Dettifoss Waterfall
Ásbyrgi Canyon
Estadia: Heidarbaer Camping
26 de Agosto
Grjótagjá Cave
Viti Crater
Lake Myvatn
Godafoss Waterfall
Aldeyjarfoss Waterfall
Estadia: Dalvík Camping
27 de Agosto
Tröllaskagi Peninsula
Estadia: Hvammstangi Camping
28 de Agosto
Saudarkrokur Peninsula
Hvítserkur
Dynjandi Waterfall
Estadia: Flókalundur Camping (Hot Springs)
29 de Agosto
Kirkjufell
Hellissandur Street Art
Djupalonssandur Beach
Ytri Tunga Beach
Estadia: Akranes Camping
30 de Agosto
Reykjavík
Blue Lagoon
Jantar: Devito’s Pizza + Bæjarins Beztu Pylsur (hot dog)
Fotografias da autoria de:
Diana Lopes
Pedro Santos
Obrigado Diana (e ao fotógrafo Pedro) por esta partilha.
Por instantes, acompanhei-vos nesta viagem de sonho (para mim) e que para vocês foi bem real! Nas tuas palavras, quase consegui sentir o vosso encantamento com este pedaço de Mundo que tão poucos têm o privilégio de conhecer.
Deixem que esse vosso espírito aventureiro vos continue a guiar por tão belas paragens!
E partilhem connosco esses momentos únicos!
Obrigado Diana! Obrigado Pedro!
Um beijo enorme para vocês!
As vossas fotos, comentários e este texto dão vontade de ir a estes locais. Obrigado pela partilha!
ZL