Meio ano de existência e a Vida já nos quer ensinar coisas. Agora que já aprendi a fazer xixi e cocó nos locais socialmente aceites, tenho dado com o focinho, ao longo do último mês, num conjunto de emoções/sensações para as quais nem sabia estar preparado.
A Perda
Os meus dentes caíram-me como as folhas que caem das árvores. Bem, não todas, confesso que a algumas não lhes dou a oportunidade de sentirem a suave atração da gravidade. Irão os outros dentes cair também? Será que tenho que os encher de espuma como Ele e Ela fazem logo pela manhã e antes de dormir? Não tinha isso na minha lista de rituais, mas pela sobrevivência há que fazer opções.
Pergunto-me se algo no meu corpo me pertence realmente. Irá a minha cauda cair também? As minhas orelhas? O meu pêlo? O que quer que a Vida me queira ensinar com isto, podia fazer uso dos meus brinquedos. Eu já os perco de vez em quando, isso devia contar alguma coisa, não concordam?
Numa perspetiva mais material mas igualmente penosa, perdi a minha cama também. Cãofesso, contudo, que poderei ser em parte responsável, já que nos últimos dias me dediquei quase exclusivamente a perceber qual seria o seu aspecto depois de rasgada e roída. Agora já tenho a reposta: é um aspecto ausente.
Eles deram-me uma manta em substituição. Espero que não tenham ficado zangados. Pelo sim pelo não, decidi imitar-lhes o ritual: antes de me deitar, puxo a manta para um lado e para o outro e abano-a um bocado com os dentes. Para dar alguma personalidade, decidi também rodar duas vezes sobre mim antes de, por fim, atirar o meu pê-lo de encontro a ela.
A Paixão
Nestes dias tive direito a um peitoral novo. Azul, como os olhos d’Ela. Cãoincidência ou não, conheci a cadela da minha vida. Mal lhe senti o cheiro, soube que era aquele o perfume que andava à procura. E eu a pensar que só a corrida é que dava taquicardia. Atirei-me logo para o chão para exibir a minha barriga lisa e limpinha de quem não comete excessos alimentares e se lambuza pelo menos cinco vezes ao dia. Ela não resistiu. Se quiserem tirar notas, estejam à vontade. Talvez tenha sido do azul, às tantas a cor é magnética. Mas a minha auto-estima obriga-me a pensar que o meu charme ajudou à magnetização. O quer que tenha sido, espero que ela não se faça difícil e continue a aparecer. Pensar em ficar sem a ver dois dias é pior que estar a olhar para os meus biscoitos e não conseguir saltar alto o suficiente para chegar até eles.
A Imensidão
Começo a ter a sensação que o mundo vai muito além dos metros quadrados que conheci até então. Os meus passeios de fim de tarde têm sido cada vez mais variados. Toda uma nova panóplia de relva, pombas, e paisagens. Conheci o rio Douro e a Serra do Pilar. Conheci Belém e os jardins que se prolongam para lá do CCB. Nesse dia, percebi que os humanos afinal são bem parecidos connosco: não faltava gente a comer e a dormir na relva, exibindo a boa vida.
Mas a grande descoberta do mês foi o meu jardim particular da casa da Margem Sul. Como é que eu ainda não conhecia aquele mundo encãotado? Aquele é o local perfeito para pôr em prática os meus desportos de eleição: corrida em círculos ou aleatória em grande velocidade pela relva fora intercalada com breves paragens para respirar; peregrinação e sumiço de corcódoas por tempo indeterminado; repouso e meditação à sombra de uma árvore à escolha após um rodízio de folhas caducas que se assemelha à Bonnes ‘R Us mas em versão outdoor.
Pergunto-me o que me espera o próximo mês. Alguma pista?
O que quer que venha por aí, que seja docinho. Vocês acreditam que Ele foi com Ela à Suiça e nem um chocolate me trouxeram? Já sei, Vida, já sei, prometo que não guardo ressentimentos.