recomeça, já dizia o miguel

“Recomeça…. se puderes, sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade
Enquanto não alcances, não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.”

Conheci o Miguel há uns anos. No auge das angústias e da pressa de viver, a que também chamam adolescência. Não recordo os detalhes do encontro, mas era capaz de apostar o outro olho do Camões em como foi numa das aulas de Português – Será que apostar o outro olho do Camões dá direito a prisão em terras lusas? Valha-me Santa Imprudência. – O Miguel não me deixou muitas lembranças desse primeiro encontro. Mas deixou-me estas palavras, que num intervalo aproximado de anos bissextos se fazem içar pelas cordas da minha memória. Hoje, recordei-as ao som de outro Miguel, de outro poeta.

O Miguel da Recantiga
“E era as folhas espalhadas, muito recalcadas no correr do ano,
A recolherem uma a uma por entre a caruma de volta ao ramo.
E era à noite a trovoada que encheu na enxurrada aquela poça morta,
De repente, em ricochete, a refazer-se em sete nuvens gota a gota.
E, era de repente o rio, num só rodopio a subir o monte,
E a correr contra a corrente assim de trás para a frente a voltar à fonte.
Um monte de cartas espalhadas des-desmoronando-se todo em castelo,
E era linha duma vida sendo recolhida de volta ao novelo.
E era aquelas coisas tontas, as afrontas que eu digo e que me arrependo,
A voltarem para mim, como se assim tivessem remendo.”

Este é um meus poemas mais-que-tudo da música portuguesa. Não será de estranhar, vindo de um dos meus artistas mais-que-tudo da música portuguesa. Já lá vão os dias em que a rádio se alimentava destas palavras. Era a todas as refeições. E eu temia por elas. Imaginem a angústia – outra vez a angústia – de ver o vosso lápis preferido a ser constantemente afiado. Mas – suspiremos – esses já não são os nossos dias. Quando este poema tocava na minha cabeça, eu dividia-me: dois quartos de contemplação pelo encaixe perfeito do jogo de palavras, três sextos de ambivalência porque essas mesmas palavras falavam de dias que já não voltam. Em suma, sentia este poema como uma proto-tentativa (de tão pouco determinada que soava) de refazer os dias já passados. E esta sensação combinava muito pouco com a minha forma de cumprimentar a vida. Estivesse eu na adolescência e seria motivo para mais uma angústia.

Talvez por ter nascido em Janeiro, com um ano inteiro pela frente, não tenha este hábito de consultar frequentemente o passado. Digamos que faço as minhas consultas de rotina. E quando algo dá para o torto, sou capaz de acampar no consultório até conseguir dar um jeito de endireitar o presente. Mas, de uma forma ou de outra, a consulta corre sempre bem, porque eu nunca vou com ambições de mudança. Vou para ouvir e aprender. O que está feito está feito, o que está dito está dito. E, se for tempo de mudanças, então agendo-as para o presente, ou quanto muito para os dias futuros, se houver ainda necessidade de encaixotar ou desencaixotar emoções.

Hoje, deu-me aquela vontade súbita de usar o lápis preferido. Ouvi a Recantiga três vezes seguidas, porque isto de matar saudades requer abraços demorados. E eis que quando os três sextos ambivalentes se preparavam para picar o ponto, o outro Miguel entra na sala. Talvez eles tenham feito um pacto secreto pelo nome que os une. Mas se não era o Torga a trazer-me as primeiras notas do “Recomeça”, eu não creio que algum dia fosse capaz de olhar para a “Recantiga” do Araújo como uma sequência de possíveis recomeços. Como se pudéssemos organizar o passado às fatias, e com cada uma delas criar a oportunidade de fazer um bolo melhor. Reformular os ingredientes. Afinar quantidades. Relançarmo-nos no jogo, como se a vida permitisse que, de quando a quando, os dados mostrassem o mesmo número de pintas.

Agora – obrigada Miguel! – já só um terço de mim se sente ambivalente a ouvir a Recantiga. E eu digo-vos qual é: é o terço teimoso. Mas, a julgar pela fatia de hoje, mais uma boa dose de uma boa poesia e, quem sabe, recupero a minha unidade e faço as pazes com a cantiga.

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Não há dois Miguéis sem três, por isso obrigada Miguel pela tua amizade desde aquele tempo das angústias. Este texto é para ti, embora os dois saibamos que a minha real arte será sempre a banda desenhada.

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