O Alentejo é colo para mim. Não faço ideia porquê. Não nasci lá. Nunca vivi lá. Ainda assim… das poucas vezes que por lá passei, soube sempre que queria voltar. Que iria voltar. Não era o plano para este ano… mas pouco foi o que este ano correu como planeado, verdade? E o Alentejo será sempre o nosso plano B, imagino. É ingrato, eu sei. Talvez por o termos tão perto, talvez por sabermos que será sempre bom, será sempre assim… vocês sabem.. como só o Alentejo sabe ser.
A nacional de Vila Velha de Rodão até Castelo de Vide foi um prefácio de adoçar os olhos para estes 4 dias de viagem – os que restaram de um plano original de 2 semanas. Outra reviravolta de 2020. Mas sigamos viagem. Devagar. Até porque não se pode ter pressa por lá. Não se consegue. E, por isso, 4 dias obrigaram-nos a fazer escolhas. Escolhemos o Parque Natural da Serra de São Mamede para ser o chão que pisaríamos, o ar que respiraríamos e o teto sobre o qual dormiríamos nestes dias de um Outono ainda tímido.
O verdadeiro primeiro encontro com Castelo de Vide foi digno de moldura. O sol preparava os lençóis da cama onde nesse fim de tarde se deitaria enquanto nós, de olhos bem acordados, seguíamos as indicações para o Miradouro Nossa Senhora da Penha. E que bonito foi encontrar a vila naquela luz de entardecer, aquela luz quente sobre o manto branco de casas que se espalha aos pés do castelo. O silêncio e a beleza do lugar convidavam a ficar. Horas, facilmente, se lhe juntássemos a companhia da nossa leitura eleita para férias. Mas o sol escondia-se agora do outro lado da montanha, e foi atrás dele que descemos até à vila, onde planeávamos fechar o dia com um prato típico alentejano e um brinde com vinho tinto. Alentejano, também ele. Difícil é escolher qual.
O desfecho seria um pouco diferente: as luzes noturnas que revelavam agora os contornos da vila deixaram a descoberto o charme de uma praça com vida, e as portas fechadas do restaurante onde planeávamos jantar. Como tínhamos o trabalho de casa em dia, não foi difícil escolher a próxima opção – quem diria que, no final de contas, o nosso brinde iria soar dentro das muralhas que guardam a bonita surpresa que é Marvão.
O sol do dia 9 de outubro acordou generoso, e juntou-se a nós para o pequeno-almoço, que de pequeno teve pouco. Esperavam-nos umas horas de exercício, pelo que só poderíamos ficar gratos por este banho de sol e nutrientes pela manhã.
Em Portagem, um par de horas mais tarde, fizemo-nos à estrada pela calçada romana, num trilho circular, de quase 8km, com vista e passagem por Marvão. Uma manhã a respirar natureza, sob os braços de árvores centenárias, que nos guardam a nós como às suas histórias de tantas vidas. São elas as verdadeiras donas daquelas longas terras de ninguém. Quem corre por ali como se também fosse tudo dele é o nosso pequeno Buddha. Os meus olhos brilham mais que o sol já alto, ao vê-lo assim, curioso, livre, feliz. Importa confessar, ainda, este amor sazonal que me visita ao ver os quadros que as folhas de outono pintam melhor que ninguém. Ao longo da calçada, são essas folhas quem mais se ouve num hino de onomatopeias ao ritmo de quem passa: sejam as patas do cão, ou estes nossos pés que caminham decididos até Marvão.
O caminho de regresso ao Monte das Mariolas para aquele que seria o nosso mergulho de despedida oficial do Verão fez-se pela estrada nacional mais sexy de Portugal: N 246-1 para os visitantes, “estrada das cuecas” para os que já perderam a conta às vezes que contemplaram estes sobreiros em trajes menores, de um branco sempre incólume, como se a cada amanhecer se vestissem para casar.
Reservámos o final do dia para sentir a vida que flui entre as ruas e ruelas de Castelo de Vide. Contudo, mesmo numa sexta-feira amena, são várias as lojas fechadas e muito poucas as pessoas que se passeiam por ali. As ruas que se estendem ao longo do castelo têm uma beleza particular, digna de postal. Nelas, há a vida das plantas que enfeitam as fachadas, e dos gatos que espreitam nas janelas ou se demoram na calçada, à luz de um sol que já se prepara o seu ritual de despedida.
Com o castelo fechado, deixámo-nos ficar por ali mesmo, naquele final de tarde, na companhia de um pôr do sol de encher o olho e aquecer o rosto, o quadro da vila diante de nós. Foi já à luz ténue dos candeeiros de rua que regressámos ao centro da vila atravessando as principais artérias da Judiaria.
À porta da sinagoga, os meus olhos demoraram-se num painel que citava um fragmento do discurso proferido em Castelo de Vide, pelo Presidente da República, Dr. Mário Soares, a 17/03/1989:
“Na paisagem alentejana e nesta tão bela terra, a Judiaria ergue-se, desafiando os séculos, como um símbolo que desejamos seja de tolerância, de fraternidade e de unidade essencial do género humano. Em nome de Portugal, peço perdão aos Judeus pelas perseguições que sofreram na nossa terra”.
Dei-me um tempo para gerir as emoções. Nestes dias de intolerância que vivemos, foi preciso “tão pouco” como isto para me deixar comover.
No parque natural da Serra de São Mamede cabem 4 concelhos do Alto Alentejo. O terceiro dia levou-nos para sul. Ao longo da estrada sucedem-se os terrenos agrícolas, simetricamente cultivados. Não me canso de admirar as árvores centenárias, imponentes. São elas quem torna este lugar tão mágico, tão puro, tão pacífico. Tentamos eterniza-las entre os disparos da câmara fotográfica, mas a tarefa revela-se ingrata. É preciso sentir o Alentejo, de uma forma que vai para lá dos olhos mais atentos e da memória mais perene. Talvez por isso esta profunda certeza que irei sempre voltar.
Num dos extremos do parque, a poucos metros da estrada, ouve-se a água a correr. Os mais céticos talvez seguissem caminho pensando ser uma armadilha da mais fértil imaginação. Mas se a curiosidade vos levar pelo caminho de terra batida que nasce ali na berma da estrada, será de certo recompensada com a frescura de um banho de natureza – e este não precisa de ser apenas metafórico. Chamam-lhe Cascata do Pego do Inferno – mas eu podia jurar que o paraíso também mora ali. Talvez o encontres, se te permitires ficar por umas horas, na companhia de um bom livro e do som da água a cair.
Em Alegrete, a poucos quilómetros, vale apena dar uma oportunidade ao Castelo – o melhor miradouro do dia. Ali, as cores mais vivas são as da bandeira nacional que se revela ao sabor do vento. O horizonte, por seu lado, pinta-se de tons terra e de um verde seco. Uma parte dele é beleza, e o todo é imensidão. Por ali, no manto branco das casas sobressai a risca amarela, um traço de personalidade abrangente – e bastante inclusivo, diriam as paragens de autocarro se alguém as questionasse.
A Barragem da Apartadura não poderia ter surgido em melhor altura. Um desvio da estrada principal levou-nos ao que se revelaria o local perfeito para a sesta daquela tarde. E para um mergulho – bem refrescante – naquele azul apetecível a quem nem o Buddha escapou. Ao longe, a vaidosa vila de Marvão insinuava-se na aguarela do horizonte. Mal ela sabia que já nos havia convencido, desde o primeiro dia, a dedicar-lhe as horas ainda não contadas daquele dia.
As pessoas todas que não encontrámos naqueles dias estavam na verdade a aguardar por aquele sábado à tarde em Marvão. Compreensível, quando o tema é este pedaço preservado da História, toda uma vila, toda uma vida, dentro de muralhas. Deixámo-nos guiar pela calçada, para longe das pessoas e ao encontro dos bonitos jogos de luz daquele entardecer. À porta do castelo, esperava-nos o melhor crepe dos últimos anos: massa de castanha com o recheio óbvio, de chocolate e banana. Foi assim, bem doce e saboroso, o nosso pôr do sol em Marvão.
O Monte das Mariolas, a nossa casa daqueles dias, escolheu nascer afastado das luzes das vilas circundantes. Esse será talvez um dos segredos para, noite após noite, nos receber com a tranquilidade que associamos a casa, debaixo de um céu de estrelas que, fosse Verão, convidaria a dormir ali mesmo, no jardim.
O dia começou bem cedo para dois de nós os três, e não foi para mim que gosto quase tanto de dormir como de crepes de massa de castanha com recheio de chocolate e banana. O Buddha revelou-se, assim, a melhor companhia e o mais bonito modelo fotográfico para o nascer do sol daquele domingo.
Ammaia é uma viagem no tempo em território alentejano. Estas ruínas de uma antiga cidade romana, classificadas como Monumento Nacional desde 1949, foram a nossa dose de cultura do dia.
Daí, a estrada levou-nos até Portalegre. É certo que não lhe dedicámos muito tempo, mas o pouco foi bastante para nos deixar impressionar com a quantidade de casas desabitadas, muitas abandonadas, e outras a aguardar, pacatamente, por um novo dono, ou uma nova vida, que lhes devolva a luz, e a personalidade tão característica das casas alentejanas.
De Portalegre iniciámos o caminho de regresso, planeado cuidadosamente com uma paragem final: a barragem de Nisa foi a nossa forma de dizer um até já, bem tranquilo e demorado, a este colo, a este Alentejo, que sempre nos faz querer voltar.
Recomendações:
– Estadia: Monte das Mariolas
– Restaurante Varanda do Alentejo (Marvão)
– Restaurante A Confraria (Castelo de Vide)
– Restaurante Mil-Homens (Portagem)
Fotografias da autoria de:
Diana Lopes
Pedro Santos